No Artes Entre As Letras que saiu hoje para as bancas, escrevo sobre o Personal Shopper, do Assayas, e o belíssimo Alice nas Cidades, do Wenders, um filme para levar para casa e não esquecer nunca mais.
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Personal Shopper (2016), Olivier Assayas ★★★
Se, à
primeira vista, o sobrenatural parece algo de inusitado na filmografia de
Assayas, a verdade é que o seu último filme não está exclusivamente – ou nem
tanto, até – interessado em explorar esse território específico. Na verdade,
ele funciona, sobretudo, como ponte para o francês abordar os assuntos bem mais
terrenos ou mundanos a que o estamos habituados a associar. Partindo – e
girando sempre em volta – da personagem de Kristen Stewart (actriz que o
cineasta "repete" depois do seu excelente desempenho em As Nuvens
de Sils Maria, e uma das melhores coisas que aconteceu ao cinema americano
nos últimos anos, desde que, bem entendido, a mesma foi resgatada do produto
juvenil Twilight), uma rapariga que, depois falecimento do irmão gémeo
médium, aguarda que este o contacte do outro mundo, o francês enceta uma
reflexão sobre como esse espiritual "mundo dos mortos" pode ter o seu
reflexo no virtual mundo contemporâneo "em rede", esse em que, de tão
aturado de informação e de previsibilidade (todos sabemos o que todos fazem,
comem, vêem), umas simples reticências num chat de telemóvel podem constituir
o zénite do mistério, do suspense e, até, do terror (isso e todas as demais
manifestações tecnológicas: as claustrofóbicas janelas de chat, o “modo avião”
como temporária forma de nos conseguirmos “desligar” e a subsequente e sôfrega
necessidade de “actualização”, etc.). E é através desse mistério que a
virtualidade encerra que Assayas aproxima as relações “em rede” de relações
“mediúnicas” – apesar das fotografias, do “likes” e das mais diversas
manifestações, quem é, de facto, a pessoa com quem falamos num chat? Até que
ponto a comunicação virtual, na forma como distorce a percepção mútua, não faz
dos interlocutores corpos habitados por… “espíritos”? São esses os dois planos
de observação que Assayas inteligentemente relaciona: um físico, mundano, aludindo
à ansiedade, à angústia, inclusivamente ao cansaço físico que o “estar ligado”
provoca em nós (o modo como Stewart está permanentemente agarrada ao telemóvel,
se também possui uma dimensão humorística, chega mesmo a fatigar e, até, a
nausear o espectador); e um “metafísico” ou espiritual, no qual o encontro
virtual vira “encontro imediato de 3º grau”. Se, felizmente, já não é vampira,
Assayas conserva de Stewart, porém, a palidez, as olheiras, o ar “hibernal” e
trashy, ao mesmo tempo que lhe reserva uma certa androgenia (com a qual joga
ironicamente na cena do vestido). A grande nódoa é aquele monólogo final de
Stewart (que se interroga sobre se tudo o que vê/ouve/pressente é “só na cabeça
dela”), semi-twist pouco sério (a sugerir, afinal, um mero delírio psíquico)
que imprime uma ambiguidade forçada ao filme.
Alice
nas Cidades
(1974), Wim Wenders ★★★★
Numa
excelente cópia restaurada, aquele que será o que Wenders considerou
verdadeiramente como o seu “primeiro” filme, e tomo inicial da sua trilogia “road
movie” (juntamente com Movimento em Falso e Ao Correr do Tempo),
vê-se hoje com o mesmo entusiasmo de à data do seu lançamento, forma de
sublinhar como em nada se mostra datado ou ultrapassado. Não é só aquela coisa
de “envelhecer bem” – mais do que isso, é um filme intacto na sua juventude, na
sua frescura, ao que ajuda, claro, a sua própria natureza de road movie,
de filme derivativo, “em andamento”, eternamente em busca de algo (porque é a
procura aquilo que interessa, claro, e não a chegada), sendo, neste sentido, um
filme “interminável”, como se o Philip do filme ainda hoje andasse por aí,
entre estradas e polaroids, talvez até ainda na companhia da pequena Alice (não
saberemos nunca se eles chegarão, de facto, a encontrar-se com a mãe…). É, por isso,
um filme “sem destino” e que, não por acaso, termina num combóio em andamento,
como se o espectador tivesse sido apenas uma estação onde ele parou
momentaneamente antes de voltar à marcha. Iniciando Philip – e o próprio
Wenders, ele mesmo um fascinado pelos EUA em toda a sua complexidade – a sua
jornada na América, viaja depois para a Holanda e daí para a Alemanha, em todos
esses lugares se sentindo um “estranho”, alguém “de fora” (inclusivamente no
seu próprio país, a Alemanha), um estrangeiro “existencial” à moda de Camus
(bem diferente dessa coisa, hoje papagueada por tudo o que é publicidade
turística “low-cost”, do “cidadão do mundo”). Avulta, claro está, a habitual
costela cinéfila de Wenders, sobretudo através da reflexão sobre as imagens (as
fotografias de Philip) e o olhar que sobre elas projectamos – se do Estado
das Coisas guardamos, entre outras, a inesquecível afirmação de que o
preto-e-branco é sempre mais verdadeiro do que uma imagem a cores, daqui saímos
a pensar se, de facto, como se ouve a certa altura, uma fotografia nunca mostra
o que realmente vimos inicialmente. Ou essa maravilhosa e abismal sentença,
dita por uma personagem a Philip, de que a sua obsessão em fotografar se funda
na sua necessidade em se certificar de que viveu aquele instante, de que viu o
que fotografou, enfim, de saber que (ainda) existe – a imagem (o cinema, et
pour cause…) como derradeira resistência ao esquecimento e à efemeridade,
como elemento que nos fixa, a nós e ao nosso redor, para a eternidade, essa que
tão bem joga com o carácter “interminável” do road movie. Pelo meio, há
ainda essa inesquecível miúda (Yella Rottländer), a qual Wenders,
aproveitando-se da sua extrema expressividade (através da qual lhe consegue
sacar trejeitos perfeitamente adultos), vai captando de um ângulo
progressivamente mais ambíguo, sexualizado, espécie de proto-Lolita (altiva,
mimada) que, na praia, pergunta a uma estranha se acha que Philip tem aparência
de ser seu pai. É, pois, um desses filmes altamente recomendáveis, pois que fica
connosco muito para lá do seu visionamento, à semelhança do modo insistente
como as imagens da paisagem americana se passeiam na cabeça de Philip quando,
confrontado pelo seu editor com o facto de só ter fotografias e não palavras
(texto), lhe responde com uma pergunta: “Não posso escrever com imagens?”. Bom,
isso, como diria um certo sujeito chamado Robert Bresson, chama-se cinema.
São Jorge (M. Martins)
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Personal Shopper (O. Assayas)
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Alice nas Cidades (W. Wenders)
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Moonlight (D. Chazelle)
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Jackie (P. Larraín)
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Paris, Texas (W. Wenders)
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★★★★
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A Autópsia de Jane Doe (A. Øvredal)
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★★★
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Aquarius (K. M. Filho)
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★★
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