No Artes Entre As Letras desta semana, escrevo sobre o São Jorge, Aquarius e o Life. Bons filmes!
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São
Jorge
(2016), Marco Martins ★★★
O filme
que deu a Nuno Lopes o prémio de melhor actor em Veneza confirma Marco Martins,
depois de Como Desenhar um Círculo Perfeito e Alice, como um dos
mais relevantes cineastas portugueses da actualidade. É nas costas de um Nuno
Lopes “encostado às cordas”, sempre em passo rápido, que vamos percorrendo as
margens de Lisboa, do bairro da Bela Vista ao submundo das empresas de
cobranças difíceis, sempre no escuro, sempre de noite – é caso para dizer que
“a morte sai à rua”. Ao contrário do que por vezes se vê no cinema nacional, em
que a “portugalidade”, a pretexto de um tratamento que se pretende o mais
“sociológica” e genuinamente possível, acaba retratada de forma boçal e forçada
(caso, por exemplo, de Sangue do Meu Sangue), Martins filma o país e os
portugueses de um período terrível (a crise e a presença da Troika) com uma
justeza singular, sabendo explorar as histórias e os dramas de uns e outros (a
pobreza, a imigração, a luta sindical) com o mesmo respeito e sensibilidade,
sem jamais cair, porém, na velha tentação de endeusar as personagens num
simplismo ingénuo (José Raposo, em magnífico desempenho, é o mesmo homem que
admiramos na luta sindical e repudiamos no que de racista e xenófobo
manifesta). Martins demonstra uma grande solidez na câmara (sente-se à
distância que sabe e domina perfeitamente os planos e os enquadramentos que
imaginou), assim como no trabalho de iluminação, determinante num percurso que
se faz sempre – literal e metaforicamente – na sombra, espécie de “descida aos
infernos” de um homem bom cuja imagem exterior volumosa não bate certo com a
sua natureza profundamente frágil, “lutador” que, para fazer dinheiro, tanto
“leva” (no ringue) como “dá” (nos devedores). Nesta “queda de um anjo”,
simultaneamente realista e
melodramática, há a apontar de menos bom a previsibilidade do argumento
(sequência do tipo contenção-explosão-redenção), patente no modo como o filme
termina, final aberto (e “fuga para a frente” quer para a personagem, quer para
o próprio filme) que já se pressentia desde, pelo menos, o segundo terço do
filme.
Aquarius (2016), Kleber Mendonça Filho ★★
O
último filme de Kleber Mendonça é o típico exemplo de uma proposta cheia de
boas intenções mas cujo resultado final se revela coxo, quase caricatural. Se o
argumento, em si, se mostra pleno de sentido e oportunidade, a forma como
Mendonça procura filmar aquela sensação de "aprisionamento"
progressivo e silencioso (e carpenteriano, não fosse o americano uma das
grandes influências de Mendonça) em torno de Clara (Sónia Braga) nunca
convence, desde logo pelo modo como o brasileiro, visivelmente fascinado com a
sua actriz (caso clássico de uma "diva" que o é por si só, não
carecendo de uma câmara aduladora), a contempla a todo o tempo, fazendo-se
notar mais a presença da câmara do que a da actriz, ambas saindo a perder. Mas
o problema está também na desarmonia da câmara de Mendonça (muitos e diferentes
modos de filmar, de planos gerais abertíssimos a grandes planos irrelevantes,
"zoom in" abruptos que lembrando, por exemplo, De Palma, acabam por
ser mais evocadores do que outra coisa, inclusivamente ângulos diversos, como
aqueles oblíquos que captam Clara a mirar o prédio) e na incapacidade da montagem
em dar a fluidez necessária; na fragilidade da mise en scène, visível em cenas que simplesmente
não funcionam (as conversas de Clara com o jovem imobiliário, o flirt
frustrado com o homem da festa, a tarde com o jovem casal na praia) e, até, do
trabalho de representação (se se pretendia algum “naturalismo”, os resultados
traíram claramente as intenções); ou, ainda, na música brasileira martelada,
tentativa de injectar, sem qualquer subtileza, intensidade e simbolismo à
força. Mas até o próprio o argumento se revela, no seu desfecho, assaz frouxo,
algo a que nem Sónia Braga, actriz de riquíssimos recursos, consegue dar a
volta: não só a ameaça de um escândalo nas notícias (num tempo em que os
"escândalos" duram, em virtude da diarreia noticiosa das redes
sociais, pouco mais do que 24 horas, se durarem) como aquela ida de Clara à
imobiliária onde apresenta a (pobre) prova da malvadez acabam, afinal, na sua
inocuidade, por fazer do filme um objecto inofensivo e pouco ou nada
subversivo (contra aquilo que, supõe-se, era intenção do cineasta).
Life (2017), Daniel Espinosa ★★
Coisa
já vista (Alien, The Thing), é certo, mas nem por isso de deitar fora, o
filme de Espinosa reflecte algo que de há uns anos para cá se vem sentindo no
cinema americano, a saber, a tendência para ser nos géneros de terror e de
ficção científica que hoje encontramos, na sua sobriedade, solidez e economia
(da narrativa, não de recursos), algo (um estilo, uma postura) próximo de uma
certa ideia de cinema “clássico” (americano). Se as referências cinéfilas são
as inicialmente mencionadas (e o filme saia, na comparação, a perder), não deixa
de agradar à vista a mão de Espinosa na câmara (aquele longo plano sequência
inicial é todo um exercício cinematográfico “exótico” de ver actualmente em
filmes deste orçamento e mediatismo), o trabalho competentíssimo dos actores
(Jake Gyllenhaal, como quase sempre, excelente, e Rebecca Ferguson a reclamar
decididamente voos mais altos) e, enfim, a seriedade do argumento, que, embora
faça a questão metafísica ceder ao action movie, não autoriza nunca a
presença daqueles momentos pateticamente melodramáticos habituais (os de Gravity
ou Interstellar), simultaneamente sabendo sempre manter o suspense no
espectador, de que o final, a anunciar uma sequela, é o culminar.
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