segunda-feira, 5 de março de 2018

tempos


 

 
 
Summer of 42 é, como todo o cinema puro, um filme sobre a passagem do tempo (e o tempo, como se sabe, é, ontologicamente, um topos cinematográfico em si mesmo). Descendo mais à terra: um filme sobre velhos e novos, maturidade e inocência, experiência e aventura (num certo sentido, é um “filme de aventuras”). Uns querem descobrir tudo; outros lamentam-se por já tudo terem descoberto. Uns vivem no frémito de poder aceder aos Segredos (as “Choses secrètes”, então – sobretudo, o sexo, claro); outros sabem já (ou julgam que sabem...) que a vida, ao fim ao cabo, poucos segredos guarda (o tempo, de volta a ele, é um deles… “O tempo pergunta ao tempo quanto temp…”). A cena dos dois amigos com as raparigas na sala de cinema (conhecem-se mesmo ali, na fila para os bilhetes, flirt talvez impossível nos dias de hoje) é um bom resumo disto tudo. Mas, antes disso, Hermie havia já encontrado Dorothy a sair do cinema, sozinha, momento em que Mulligan aproveita para apanhar os cartazes dos filmes “em sala”. Um deles é Now, Voyager (já escrevi sobre ele por acaso: http://www.apaladewalsh.com/…/now-voyager-1942-de-irving-r…/), aquele, aliás, cujo cartaz Mulligan mais insistentemente filma e que os miúdos (não) vão ver (Dorothy acabara de o ver minutos antes).
 
Na sala de cinema, então: o contraste-súmula entre o amor carnal, iniciático, de uns (os miúdos que tentam colocar a mão no peito das amigas no escuro da sala, chegando até a confundi-lo com o… ombro), e o amor maduro, na verdade platónico ("Oh Jerry, don't let's ask for the moon, we have the stars…”, a famosa linha que os miúdos ouvem nesse momento, é código para uma relação que, doravante, não deverá galgar os limites da comunhão espiritual), de outros. Os primeiros (os miúdos) não compreendem os segundos (as personagens de Now, Voyager), velhos e novos, preto-e-branco e cores púberes, os vivos não compreendem os mortos, há uma incomunicação total naquela sala de cinema – mas compreenderão mais tarde, quando crescerem (quer queiram, quer não). Vida e ecrã, vai-e-vem (seria a essa reciprocidade que aludia, afinal, o título do filme de César Monteiro?), como sempre. A incomunicação é de tal ordem que Hermie, posteriormente, querendo convidar Dorothy para o cinema, diz-lhe não se importar de ver Now, Voyager novamente – porque, na verdade, não compreendeu nada (aliás, mal o viu, preocupado que estava em aproximar-se da miúda), não percebeu a gravitas que ele carrega. "Vamos ver o filme outra vez?". Ela, mais adulta, mais madura (justamente...), sorri ternamente (não deixa de haver condescendência nesse esgar, próprio de quem já está “uns anos à frente”). "No, thanks": ela já consegue "comunicar" com aquele filme, sabe do que ele trata, percebe como ele é incómodo, sobretudo quando o foi ver sozinha. O escuro é escape, o escuro não é o mesmo das terríveis noites da guerra em que morrerá o seu marido (estamos conversados quanto à guerra e à força: “U.S. ARMY” é a t-shirt que veste o amigo de Hermie, miúdo boçal, grosseiro, animalesco – sim, ainda é só um miúdo, mas…).
 
Tudo se joga nesta ideia de (in)comunicação, de (in)compreensão de afectos, experiências, prazeres. A capacidade (dela) e a incapacidade (dele) para ver, com-olhos-de-ver (sempre o olhar, claro), Now, Voyager - só a maturidade (isso, o tempo) permite apreendê-lo (e não esquecer o facto de o filme de Irving Rapper ser, todo um ele, um filme sobre o desejo e a libertação). Na carta final de Dorothy, o tempo novamente, sempre ele, agora a servir de almofada, de ampara-quedas (e Dorothy precisará bem mais dele do que o próprio Hermie…): "Dear Hermie, I must go home now. I'm sure you'll UNDERSTAND. There's much I have to do. I won't try and EXPLAIN what happened last night because I know that, IN TIME, you'll find a proper way in which to remember it". Ou outra forma de dizer: "Don't let's ask for the moon, we have the stars"…

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