terça-feira, 13 de julho de 2021

ninguém sabe o que ele diz




Já passaram uns dias, tinha-me esquecido de o deixar aqui... Boas leituras



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Nunca olhamos duas vezes da mesma forma para uma coisa. Não apenas um filme, uma canção, um quadro. Podem ser coisas mais intrigantes: o mar, por exemplo. Há um ano, na varanda deste mesmo hotel um dia filmado por Wim Wenders, o ruído das ondas falava-me, embalava-me de outra maneira. Por certo que, pouco mais de um ano após o início da pandemia, os meus olhos estão diferentes. Talvez que só tardiamente me esteja agora disso a aperceber. Por certo, também, que não somos os mesmos quando nos olham em duas ocasiões distintas — e quem não nos diz que são, afinal, o sol, o vento, o mar quem nos olha e testemunha, enfim, diferentes?

Felizmente, há uma senhora muito idosa que, decerto numa das raras saídas de casa em pandemia, insiste com o vigilante apressado do Chalet da Condessa d’Edla (Elise Hensler, actriz e cantora lírica antes de D. Fernando II por ela se apaixonar em pleno São Carlos; diz-se que era Un ballo in maschera, de Verdi, o espectáculo dessa noite de Abril de 1860…) e me remete para questões muito mais essenciais: “Duvido muito de que, naquele tempo, já se fizessem casas de banho como esta que os senhores aqui têm”. A filha puxa-a, mãe temos de ir, o senhor quer fechar, e só a custo ela acede, uma estóica demonstração de vitalidade de fazer corar de vergonha os fragmentos de ruínas que — fetichismo romântico supremo — D. Fernando II mandou acoplar à fachada do Palácio da Pena. Num bar lisboeta onde o sol não nos falha, apercebo-me da presença de uma grande e longeva actriz portuguesa na mesa ao lado. Gostaria de estar enganado, mas a intuição, nestas coisas, raramente me falha. Não é privilégio, antes uma maldição, esta de fazer a fotografia antes sequer de ter havido tempo para pegar na câmara. Subitamente, um carro pára mesmo à nossa frente; o condutor abandona o volante, os meus filhos e eu gostamos muito do seu trabalho, parabéns, sim senhor, está cheia de força. Não está, não, pensa o fotógrafo ao lado, e, mal o carro arranca, esta woman under the influence que também admiro e que mal teve tempo para agradecer o gesto tal a condoída surpresa com que o recebeu, só não desaba completamente por um pequeno milagre. Já a vi tantas vezes, nunca desta forma. Quando me levanto, penso no que lhe poderia dizer sem provocar efeito semelhante; não descubro as palavras, venho-me embora.

De volta à serra, a rádio dá-me uma canção totalmente atípica dos Beastie Boys (I don’t know, do Hello Nasty de 1998) que desconhecia por completo e que, muito provavelmente, não viria alguma vez a ouvir não fosse a generosidade deste locutor (leio que só a tocaram ao vivo uma única vez): “I’m walking through time / Deluded as the next guy / Pretending and hoping to find / That distant peace of mind”… Sucede-lhe Here Comes The Sun e fico convencido de que a generosidade pode ser, afinal, intuição. À chegada, tal como há um ano, David Simon faz-me companhia, agora com Treme (2010-2013), mais uma brilhante série-documento sobre a América, desta feita sobre o histórico bairro com o mesmo nome de Nova Orleães durante a ressaca pós-Katrina: há uma cidade desfeita, uma comunidade deslaçada, muitos nunca voltaram, alguns estão desaparecidos, outros partirão… Um antes e um depois, nada ficará como antes…. Mas e… as ondas? Não oiço as ondas… Talvez num próximo ano, quiçá um próximo olhar.

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