segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

In Memoriam


In memoriam: Monica Vitti (1931-2022) | À pala de Walsh (apaladewalsh.com)


E se a esfíngica Monica Vitti dos filmes de Michelangelo Antonioni fosse, afinal, uma fogosa e estrambólica actriz de comédias? Podia ser boutade, mas não é. Para o bem e para o mal, Monica Vitti está cristalizada no imaginário do cinema europeu do pós-guerra como essa figura queer (no sentido original do termo e, quem sabe, até nos que lhe sucederam), alienígena, inalcançável. Um ser de quem o espectador nunca compreende exactamente em que medida a sua alienação é motivada “apenas” por razões do foro psíquico ou se há algo mais, um mal de vivre existencial que, não se encaixando inteiramente nos parâmetros da patologia médica, parece dialogar com outras realidades (espirituais? Transcendentais? Muda, a esfínge…). E, porém, se perguntarmos por Vitti aos italianos comuns que tenham frequentado os cinemas do seu país nas décadas de 60-70-80, eles falar-nos-ão justamente dessa tal fogosa e estrambólica actriz de comédias – falar-nos-ão de Alta infedeltà (1964), Il disco volante (1964), Le bambole (Quatro Casos de Amor, 1965), Ninì Tirabusciò, la donna che inventò la mossa (1970), Gli ordini sono ordini (Golpe de Ancas, 1972) ou Io so che tu sai che io so (1982). Ou de Dramma della gelosia (tutti i particolari in cronaca) (Ciúme, ciúmes e ciumentos, 1970) de Ettore Scola, que abordei a latere num outro texto desta casa. São apenas exemplos de um acervo cómico imenso. Se o nosso interlocutor for um italiano comum nascido nos anos 90 em diante, então – experiência própria –  ele nada nos dirá. Sobre Vitti, Antonioni, sobre a era dourada do cinema do seu país (da mesma forma, sejamos justos, que o português médio dessa mesma geração coisa alguma terá a dizer sobre Manoel de Oliveira que não a sua provecta e castiça idade). O que diz algo (ou tudo) acerca da relação entre o cinema (a sala de) e o espectador dos últimos 30, 40 anos. E, porém, gente não falta (não a comum, a cinéfila mesmo) a assegurar-nos de que, enfim, problema algum existe com o cetrimingue, o que interessa verdadeiramente são os filmes onde quer que eles possam ser vistos. Dizem-no porque, inconscientemente, a sua funda crença é a de que as salas nunca desaparecerão; veremos o que dirão quando, se, um dia tal vier porventura a acontecer. Podemos ouvir já os ecos das elegias mais solenes, mais revoltosas…
Digamo-lo de forma clara: Vitti foi uma grandiosa actriz cómica (Claudia Cardinale, embora sem o mesmo brilho, é outro exemplo de uma actriz que a cinefilia guarda na memória como a actriz de filmes “sérios”, “autorais”, mas que também protagonizou diversos papéis cómicos). Aliás, dá-se o caso de as personagens que desempenhou nos filmes de Antonioni conviverem, no mesmíssimo período (no mesmíssimo ano, até!), com as personae cómicas dos “outros filmes”. Podemos, pois, imaginar que o espanto de um espectador que saísse da sala de Il deserto rosso (Deserto Vermelho) no ano de 1964 e no dia seguinte visse a mesma Vitti em Il disco volante tenha sido da mesma ordem de grandeza daqueloutro que pela primeira vez testemunhou o som da voz de Greta Garbo em Anna Christie (1930) (“Garbo Talks!”, exortavam os posters promocionais ao filme)… As personagens que Vitti interpreta em muitos dos filmes italianos dos 60-80, frequentemente ladeada por outros grandes actores e actrizes da commedia, partilham quase sempre de duas ou mais destas características: divertidas, despropositadas, inteligentes, feministas (sem que isso naturalmente implique os actuais puritanismos woke da “sexualização do corpo” e afins), livres, sensuais, sexualmente desassombradas e politicamente (lato sensu) questionadoras, cáusticas, repentinas, ternurentas, enérgicas (quando não em esteróides). Isso mesmo se podendo até constatar naquela que é uma das raras comédias [outra é La femme écarlate (Dilema de uma Mulhver, 1969)] por si protagonizada fora de Itália, o falhado Modesty Blaise (A Mulher Detective, 1966), de Losey.
As Feiticeiras (Le Fate, 1966) é um exemplo, entre muitos, que poderíamos aqui trazer. Insere-se num tipo de produção então muito em voga no cinema europeu (Itália, Inglaterra, França) que consistia no convite a 3 ou 4 realizadores diferentes (mas com afinidades) para realizarem pequenos filmes (médias-metragens, normalmente à volta dos 30 minutos) sob um motto comum (geralmente, humorístico). Neste caso, nada mais, nada menos do que Mauro Bolognini, Mario Monicelli, Antonio Pietrangeli e Luciano Salse. No cast, além de Vitti (protagonista do segmento “Fata Sabina”, assinado por Salce), pontificam, entre outros, Cardinale, Raquel Welch, Alberto Sordi, Jean Sorel [o marido de Deneuve em Belle de jour (A Bela de Dia, 1967)]. Pela sua parte, Salce faz uma coisa muito démodé, hoje passível de gerar os mais siberianos opróbios: brincar com coisas sérias. Por outras palavras, um filme a que as brigadas censórias dos nossos dias chamariam um figo. Em traços simples, o filme inicia-se com Vitti num repelão fugindo de um homem que a quer violar num bosque; a certa altura, um carro passa e Vitti, chamando por socorro, é salva pelo condutor. Aproveita a boleia (e um gelado de baunilha e limão) e, às preocupadas perguntas do socorrista sobre o sucedido, vai reproduzindo oral e visualmente – com muito, muito pormenor – como tudo aconteceu: que veio de uma festa para a qual usou aquele vestido muito curto, que apanhou boleia de um desconhecido bem apessoado (“Diplomata!”) que aí havia conhecido, que rebateu o banco de passageiro para trás de forma vagarosa, que… Não saberemos mais porque a reconstituição dos factos de Vitti é tão exacta (libidinosa) – deliberadamente ou não, o espectador que se desemalhe – que o seu salvador vira predador e no plano seguinte já o estamos a ver a reproduzir a perseguição no bosque do início do filme. O terceiro acto arranca da mesma forma: Vitti novamente salva por um condutor de passagem, de quem volta a aceitar boleia. A meio do caminho até Roma – a estrada, sempre a mesma, sem carros e ladeada por graciosas árvores cuja forma, semelhante a um cogumelo, vai para além do mero “fálico” –, o condutor estaciona momentaneamente para fazer um telefonema. Sem que ele se aperceba, Vitti aproxima-se da cabine e escuta a conversa. Promessas de amor, sussurros de prazer, lascívia que não acaba… Quando se apercebe da sua presença, o homem prossegue a conversa olhando Vitti directamente nos olhos, insinuando-lhe as mesmas palavras que são ouvidas pela pessoa do outro lado do telefone. Quando a chamada termina, Salce corta para o bosque e quem agora persegue ferozmente este desgraçado homem é ela mesma, Vitti em pessoa… Che figata!
Devo a Monica Vitti – a ela e a Michelango Antonioni – o meu verdadeiro mergulho no cinema.  A sua presença como coisa consciente e obsessiva na minha vida. La Notte (A Noite, 1961), cuja capa do DVD na prateleira de casa dos meus pais há muito me inquietava, foi o portal. Jamais esquecerei. E não descanso enquanto não vir o (único) filme que Vitti realizou, em 1990 (há outro realizado para a televisão em 1983, espirituosamente intitulado La fuggiDiva). Chama-se Scandalo segreto e reza assim: “… While reviewing her video diary, a woman finds footage of her husband cheating on her with her female friend. In desperation, she contemplates suicide, but her male film-director friend suggests that they make an actual film about her”… Hitchcock [imagino os filmes que Marnie (1964) ou The Birds (Os Pássaros, 1963) poderiam ter sido com Vitti no lugar de Tippi Hedren] e Antonioni rondam por aqui, claro. Devo-lhe muito, imenso. A minha vida tomou literalmente outro rumo depois de ver um filme consigo. Chamava-se Valentina e deslizava deitada, cabeça levantada e olhar em frente, por um tabuleiro de xadrez. … E ainda nem sequer disse que é a segunda actriz mais bela da história do cinema.
Grazie mille, tesoro.

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