quarta-feira, 21 de setembro de 2022

recevoir



Anos mais tarde após ter visto Persona pela primeira vez, um outro círculo, não tanto afectivo mas “gramatical”, fechar-se-ia também para mim: foi quando vi Scénario du film ‘Passion’ (1982), no qual Godard, de alguma forma, ligou os pontos na minha cabeça entre a memória do sábado no Nun’Álvares, o impacto do plano de Persona e… tudo o resto. Perante a famosa página em branco de Mallarmé [e como não ver em Godard o miúdo de Persona, ambos de costas, ambos figuras na (da) sombra usando das mãos perante o mistério da luz], perante a “praia incandescente” (o telão branco que tem diante de si), Godard começa por dizer que fazer o filme é um trabalho de escritor: escrever, com as mãos. Acabará por refutar a sua própria ideia inicial (e, por outras vias, a de Bresson): não, o cineasta não escreve, não se trata de escrever, mas de recevoir. “Rece-ver” (voir, de “ver”, e recevoir, de “receber”, no francês). Ao enunciá-lo, desenha uma importante nuance com as mãos: “Mais tu ne veux pas écrire“, diz enquanto replica o gesto de escrever com a mão direita; “Tu veux voir, tu veux recevoir“, esticando agora as mãos e virando-as de ambos o lados. Recevoir – com os olhos, sim, mas também com as mãos. É com elas que, nesta praia sem mar, criamos as ondas. Movimento.

Sempre tendemos a ver no cinema o reflexo da vida, ou o contrário: em nós, o reflexo das imagens e das histórias que elas contam. O movimento vaivém de recevoir: ver e receber; projectamos o nosso olhar sobre e, simultaneamente, somos o objecto, o receptáculo da luz projectada. Estamos sempre sobre e sob (como o gesto de Godard alternando as costas e palmas das mãos) a luz, as imagens.

Mimetizamos gestos e atitudes que vemos nos filmes, mas talvez eles estejam nos filmes porque alguém os viu primeiro nos homens. Será assim? Não creio. É bem possível que o cinema tenha uma natureza verdadeiramente demiúrgica: cria dramaturgias que, uma vez exercido o respectivo efeito magnético no espectador, se infiltram e diluem nos comportamentos do quotidiano. Ele é o grande e universal metteur en scène, aquele que mete-a-vida-em-cena – antes de a vida ser… vida. Fazendo-o, porém, ele, cinema, não é a vida, sequer o seu reflexo; é já outra coisa, uma realidade distinta, autónoma, não necessariamente (ou de todo) paralela.

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