segunda-feira, 13 de abril de 2009

Um dia também te quero escrever... metáforas

Meu pai dizia "este filme é muito na onda..." quando o interrompi para dar um gritinho: "muito na onda do Cinema Paradiso!!". E tinha acertado.
Ontem à noite vi O Carteiro de Pablo Neruda. Tal como em Cinema Paradiso - e isto tem, enfim, muito dedo italiano - somos tocados por uma sensibilidade incomum. A fotografia é lindíssima, o carteiro faz um papel fabuloso... e Neruda conserva toda a aura daquele que é Poeta.
Soltei umas lágrimas brutas, rapidamente amarfanhadas pelos meus lábios envergonhados. E a seguir foi uma vontade tremenda de beijar o carteiro como se meu filho fosse, abraçar Neruda como se de meu pai se tratasse, fazer uma festa no cabelo de Beatrice Russo, como fosse ela a metáfora que me pertencesse...
Depois fui ao escritório de meus pais perscrutar o que de Neruda havia. E não tinha mãos para o que encontrei. Aí o filme quase que se me esqueceu por completo e assomou-me outro pensamento central: o privilégio, a sorte que é poder fazer tal. Naqueles 5 minutos que mediaram o momento em que acabei de ver um filme inspirador e fui procurar um testemunho real de uma das suas personagens, compreendi que, infelizmente, este é um daqueles prazeres raros. Ao alcance de poucos. É triste, muito triste. Quem me dera abrir naquele momento o velho escritório a todas as almas que tivessem acabado de vêr O Carteiro de Pablo Neruda e gostassem de saber um pouco mais do poeta... E aos que não tivessem visto, oferecia-lhes a oportunidade de o vêr. Com todo o amor.
Democratização do acesso à cultura, diz-se na Política (a que não corresponde - e pelo menos aqui era bom que correspondesse! - à etimologia...). Pois, está muito bem... mas falta-lhes o amor. O amor de quem dá. Que se transforma no amor de quem recebe.
O amor de Neruda, por exemplo:

(...)
Mas eis que aquela
que passou pelos meus braços
como uma onda,
aquela
que foi somente um sabor
de fruta vespertina,
subitamente
pestanejou como uma estrela,
ardeu como uma pomba
e na minha pele senti que ela
se desatava
como a cabeleira duma fogueira.
Amor, tudo foi mais simples
desde aquele dia.
Obedeci às ordens
que o meu olvidado coração ordenava
e enlacei a sua cintura
e solicitei a sua boca
com toda a força
dos meus beijos,
como um rei que arrebata
com um exército em fúria
uma pequena torre onde cresce
a açucena selvagem da sua infância.

Por isso, Amor, eu creio
que emaranhado e cruel
pode ser o teu caminho,
mas que regressas
da tua caçada
e quando acendes
novamente o fogo,
como o pão sobre a mesa,
assim, singelamente,
deve estar o que amamos.
Amor, isso me deste.
Quando pela primeira vez
ela veio a meus braços
passou como as águas
numa despenhada primavera.
Hoje
dou-lhe guarida.
São estreitas as minhas mãos e pequenas
as órbitas os meus olhos
para que elas possam receber
o seu tesouro,
a cascata
da infindável luz, o fio de ouro,
o pão da sua fragrância
que são singelamente, Amor, a minha vida.

excerto de Ode ao Amor, Pablo Neruda

5 comentários:

Street Fighting Man disse...

já tinha visto o filme à uns tempos. acho que é impossível uma pessoa não ficar omovida com aquele carteiro e com aquela sua pureza intuitiva. e ya, a fotografia é fantástica

Ary disse...

Somos mesmo privilegiados. Que percentagem de portugueses terá um, basta um, livro de Neruda em casa? Pior, quantos morreram sem nunca terem ouvido falar dele? Quantos morreram sem experimentar a beleza (e a verdade, e o amor e a justiça...)?

PS: Não acham Neruda semelhante a Vinicius?
Já perguntei isto a algumas pessoas e todas me disseram que não, mas eu continuo a achar que têm muita coisa em comum.

Anónimo disse...

a propósito de democratização do acesso à cultura:

http://opapalagui.blogspot.com/

o blog do bibliotecário ambulante de proença-a-nova. ele conta uma série de aventuras, mostra fotografias, muito muito bom

ana claudia disse...

" - Don Pablo - declarou solene. - Estou apaixonado.

O vate fez do telegrama um leque, que se pôs a abanar diante do queixo.

- Bem - respondeu- não é assim tão grave. Isso tem remédio.

- Remédio? Don Pablo, se isso tem remédio, eu só quero estar doente. Estou apaixonado, perdidamente apaixonado.

A voz do poeta, tradicionalmente lenta, pareceu deixar cair desta vez duas pedras, em vez de palavras.

- Contra quem?
- Don Pablo?
- De quem, homem?
- Chama-se Beatriz.
- Dante, diabos!
- Don Pablo?
- Houve uma vez um poeta que se apaixonou por uma tal Beatriz. As Beatrizes produzem amores desmedidos.
- Don Pablo?
- Escrevo o nome desse poeta. Dante.
- Dante Alighieri. "

Antonio Skármeta

O Carteiro de Pablo Neruda, Ardente Paciência

Francisco disse...

"Se isso tem remédio, eu só quero estar doente!"
:)