"Vamos cozinhar uma omeleta, eu e as minhas filhas. É preciso desfiar os filetes de salmão que sobraram de ontem, para depois misturar o peixe com os ovos mexidos. Ponho Bach a tocar na cozinha. Desfiamos o salmão e batemos os ovos ao som de Bach. Isto é resistir. Porque nesta meia hora assim passada na cozinha, os que nos querem triturar dissipam-se, eclipsam-se, deixam de nos ocupar o espírito. (...) Se nos querem servir angústia para o jantar, afastarmos a angústia para longe, nem que seja só por um bocadinho, é um forma de resistência. Será alienação? A alienação é sinónimo de alheamento, e eu sei perfeitamente o que estou a fazer e digo-os às minhas filhas, explico-lhes o sentido dos nossos gestos: estamos a levar a cabo uma cerimónia de resistência ao vazio, estamos a erguer um dique contra as invasões bárbaras.
Não permitir que todas as coisas se banalizem é resistir. Não deixar que o hábito nos embote a indignação ante o que é infame e o júbilo ante o que é grandioso também é resistir. Não deixar de executar o gestos banais com a paixão das primeiras vezes é resistir. Partir os ovos devagarinho, tirar as espinhas do peixe uma a uma e não apressar a preparação da omeleta, fazendo coincidir o momento em que apagamos o lume do fogão com o final do concerto de Bach e convertendo tudo isto numa cerimónia familiar é resistir. Porque as cerimónias de trazer por casa são uma barreira contra o caos e o arbitrário, e o que nos querem ver pelas costas trazem o caos e o arbitrário para dentro das nossas casas e para dentro das nossas vidas".
Paulo Faria, "Resistência", in Ípsilon, 19 de Outubro de 2012, p. 39.
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