Em Só Deus Perdoa, sentimentos interiores de violência extrema permanecem recalcados na grande maioria das personagens (sobretudo Julian e Chang), como se todas elas fossem sanguinárias em potência, pelas mais diversas razões. Como se essa violência, de certo modo "natural" nos homens (e não só na sua primitiva existência animal, pois mesmo a Razão não impediu nem impede que a guerra, enquanto violência organizada, continue a ser uma realidade), fosse reprimida pelas convenções, de que o acto de Billy poderá ser visto como a radical e provocatória emancipação (com toda a gratuitidade que "time to meet the devil", dito por Billy antes da chacina, comporta). Esse recalcamento generalizado, essa base do icebergue (foi Freud quem situou as motivações violentas do lado inconsciente da mente humana), contrasta com o seu cume, ou seja, com aquilo que mais transparece à superfície: a aparente normalidade de todos (o polícia que garante a ordem; o dono que gere um clube de boxe) e mesmo a bondade ou "humanidade" dos seus afectos/gestos (o polícia "bom" que conta histórias à filha; o Julian que não consegue matar uma criança ou que aceita a "justiça" do assassínio do seu irmão).
Figuração perfeita desta violência em estado latente (adormecida mas capaz de acordar a qualquer instante) é a fornecida pelos numerosos planos das mãos de Julian. Muitas vezes filmadas em close picados, as mãos sobre as quais Julian silenciosamente medita acentuam a sua incapacidade e inquietação em domar o seu instinto de violência (daí a oscilação entre deixar vivo o assassino do seu irmão e a agressão inexplicável, sem mais, de dois homens num bar). Mãos estendidas e cheias de nada - mãos suplicantes, dirigidas a Deus, pedindo misericórdia (o forgiveness do título do filme) e rumo espiritual na vida terrena - que, volta e meia, se fecham em punhos simbolizadores de violência (de que o boxe é o produto "normalizado" socialmente aceite).
Mas, mais importante, são essas mãos que, outrora, se pintaram de vermelho-sangue, no crime edipidiano cometido por Julian ("he killed his father with his own hands", revelará a sua mãe), não sendo este um pormenor de somenos: são essas mesmas mãos, afinal, com que, ao longo de todo o filme, Julian tem alucinações/sonhos/delírios em as ver serem cortadas, como que se de um acto de justiça - "familiar" - se tratasse: são mãos que pecaram (que não estritamente no sentido religioso) e que, por isso, devem ser cortadas. Nesses delírios, é Chang que, amiúde, surge a cortá-las, assim se montando um intrincado e ambíguo sistema de "compensações": Julian, que deveria honrar a morte do seu irmão matando Chang, serve-se, afinal, deste último para sofrer a justa paga pela morte que provocou a seu pai.
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