Tinha 87 anos; poucos de memória. Os suficientes para se lembrar da casa onde, até casar, havia vivido com os seus pais (curiosa a inversão, a que os médicos atribuem carácter patológico, pela qual, quando a memória fraqueja sem piedade, as primeiras memórias se nos reavivam com nitidez).
Tinha 87 anos e, por essa altura, começou a rondar com regularidade a antiga casa dos seus pais, sem saber que, hoje, essa casa era outra, que os seus pais já não faziam parte deste mundo. Procurava os pêssegos que, encavalitada nas costas do pai, arrancava dos ramos das árvores, tentava entrever a casota do cão a que a sua irmã sempre dera mais atenção que ela própria, esforçava-se por ouvir o chiar do baloiço.
Certa vez, foi a uma consulta e o marido contou à médica sobre as suas incursões. Diagnosticaram-lhe uma doença comum, essa que funde a alienação com o romantismo, a infantilidade com o idealismo, enfim, um certo renascer, tolo e belo, na velhice. A médica aconselhou o marido a não contrariar os seus ímpetos e receitou o que era devido. Por essa razão, o marido passou a acompanhá-la, diariamente, religiosamente, nessas rondas, fazendo o melhor que sabia. Numa delas, insistindo impacientemente com o marido que queria entrar em casa (se era sua, por que motivo não havia de entrar?), este não viu outra solução que não tocar à porta de casa. Um homem dos seus 30 e poucos anos assomou. O marido explicou-lhe, por meias palavras e sobrolhos embaraçados, o caricato da situação, que a sua mulher já não estava muito bem da cabeça, coitada, que pensava que aquela era a casa que em tempos fora a sua e dos seus pais. Foi tudo muito constrangedor, mas o homem acedeu e deixou-os entrar. Disse-lhe que era o carpinteiro e que o seus pais haviam saído justamente há momentos, que não sabia se voltariam tarde ou cedo, que não tinha ideia, que tinha trabalho para fazer por toda a casa. Ela estranhou o carrinho de bebé ao lado da mesa de jantar, mas não fez caso. "Bem, não o quero incomodar, os meus pais certamente não apreciariam, como saberá se trabalha nesta casa. Se não sabe quando eles voltam, diga-lhes que passei cá e que vou dar um passeio, que talvez volte mais logo à noite". Não chegou a ir ao jardim.
Sem comentários:
Enviar um comentário