sexta-feira, 7 de novembro de 2014

uma noite do caraças



Há muito tempo que oiço, leio e escrevo sobre hip-hop (é só dar uma vista de olhos rápidas pela barra lateral do blog). Há muito tempo, também, que percebi que o moralismo é, quase sempre, um mau ângulo de análise das coisas - ao menos como princípio de análise. Nunca embarquei, por isso, na onda de que o hip-hop "pedagógico", o "verdadeiro" hip-hop (a "verdade" nas coisas da arte vale sempre o mesmo, independentemente da vertente ou corrente: nada ou perto disso), o hip-hop que "ensinava valores" morreu. Não porque não acredite que esse tipo de hip-hop existe - porque existe (e não morreu!) -, mas porque sempre rejeitei ortodoxias e purismos que, como se sabe, à mínima fragilidade, sucumbem, por incoerência, irrealismo ou, simplesmente, estupidez. O hip-hop, como qualquer outro género músical, como qualquer arte, pode e deve ser o que quiser ser, melhor dizendo, o que os seus intépretes quiserem fazer dele. Sem que isso isso signifique que tudo o que daí resulte seja bom e sem que me impeça de ter gostos e visões orientadas do hip-hop que creio ser o que, hoje e, especialmente, hoje visto daqui a 50 anos, é o mais interessante, talentoso, audacioso. Enfim, que, de alguma forma, contribua para a formação de certos "cânones", que, não sendo, decisivos, não deixam de ter o seu peso.

Tendo em conta tudo isto, e apesar de tudo isto, e também porque já levo algum tempo a escrever e a pensar sobre um género que acompanho quase desde que me lembro de gostar de música, chegou o momento de dizer "alto!" e traçar uma linha divisória: uma linha clara, linear e sem relativismos de conveniência.

O videoclip de "Hell Of A Night" (clicar), faixa de Oxymoron (que, de resto, rodou durante algum tempo nos meus ouvidos, mas que é significatimente inferior aos dois álbuns anteriores do senhor que a seguir enuncio), álbum lançado este ano por Schoolboy Q (elemento da Black Hippy, crew de Los Angeles editada pela Top Dawg Entertainment), é um apelo gratuito, grave e agressivíssimo ao consumo de drogas - e não estamos a falar de drogas leves. Estamos a falar de cocaínas, ectasys, cristais, anfetaminas, enfim, you name it - tudo o que conseguirmos entrever naquela recambolesca pasta, e que, de uma só assentada, é depositado numa batedora, donde sai, voilà, um super cocktail tóxico de fácil e imediata ingestão, e que Schoolboy Q não dispensa de tomar bem nos nossos olhos (para não haver dúvidas). Isto já seria mau, mas, durante o videoclip, Schoolboy Q insiste - talvez pensando que nós ainda não percebemos completamente a ideia - em dar-nos a ver como uma "noite do caraças" ("hell of a night") passa pelo consumo de todas aquelas substâncias uma por uma (além do coktail!). O modo sedutor, fascinante - em registo publicitário, como é típico de 80% dos videoclips do hip-hop (e não só) contemporâneo, com a montagem de planos muito apressada a fazer jus ao "You Only Live Once", adágio da adolescência facebookiana (Horácio, carpe diem, voltem!) - com que tudo é filmado não tem outro fim senão o de enaltecer, engrandecer, glorificar a solução para uma "noite do caraças": drogas e mais drogas. Estou completamente seguro de que não é preciso ser um maluquinho do tipo "War on drugs" - que não é o meu caso - para ver o que eu vi neste videoclip.

Mas se tudo ficasse por aqui, ainda estávamos só no campo das teorias chatas. Contudo, da mesma forma que eu, enquanto adolescente, me quis vestir como os Mind da Gap ou os Gangstarr, grafitar paredes, dançar e ser desinibido como os Pharcyde eram no videoclip da "Drop", os miúdos de hoje irão querer ter "noites do caraças" (quem é que não quer, afinal?) como aquela que podem ver (e tornar a ver, aguçando o apetite) no videoclip de "Hell Of A Night". Para isso, saberão, fascinados com o psicadelismo sexy do que viram, que tudo do que precisarão - basta isso! - é de uma mala como a que lhes Schoolboy Q lhes mostrou (que cita a mala do Fear and Loathing in Las Vegas do Terry Gilliam, mas, aí, a trip era outra e bem mais interessante). Try this at home, diz-lhes, despreocupadamente, o videoclip, depois de exibir um tipo, em notória hell of a trip, a remover um órgão de outro à facada. Hell of a night.

Não vale a pena vir com o velho do truque de "ah, mas o que ele está a fazer, na verdade, é criticar" ou citar a cruz luminosa que se vê no meio da festa como sinal de redenção e, tão artisticamente conveniente, do tal "oxímoro" que dá título ao álbum. Bullshit. Não vale a pena contra-argumentar, também, com os video-jogos violentos, os filmes, etc.: isso só prova a desorientação de quem, pretendendo-se de anti-moralista, rejeita compreender e enfrentar as grandes questões, preferindo refugiar-se no confortável relativismo do "que se lixe, já existe tanta porcaria, porque é que agora vêm falar nisto?". Que se lixe, sim, porque este texto não vai (nem tem tal pretensão!) contribuir em e para nada, mas, pelo menos, enquanto ouvinte e amante de uma cultura que partilhei com tantos amigos (alguns deles inclusivamente músicos de hip-hop) e que me esforço por divulgar e transmitir aos mais novos que me são próximos, tenho que dizer que música desta não honra o hip-hop e, sobretudo, incentiva comportamentos que, se é certo que acontecem todos os dias (e faz parte da vida que aconteçam!), não têm de ser estimulados desta forma agressiva, luxuriosa e estupidificante.

E o Kanye West que me permita a adulteração: I'm NOT just sayin'.

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