No último número do Artes Entre As Letras, escrevo sobre O Exame, de Cristian Mungiu, um dos melhores filmes que 2016 nos deu (é uma versão mais extensa do texto que escrevi para a Medeia Magazine, pág. 3).
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Depois do brilhante Para
Lá das Colinas (2012), que escolhemos mesmo como o melhor filme estreado
por cá em 2013, Mungiu “desce” de Deus e do cimo dos montes para a realidade
terrena do dia-a-dia de uma família romena em desintegração acelerada. O olhar
sociologicamente perscrutador de Mungiu – partilhado pelos seus colegas da
chamada “nova vaga” romena (Cristi Puiu, Corneliu Porumboiu, Radu Muntean, só
para citar alguns), importantíssimo movimento surgido nos primeiros anos deste
século – mostra-se mais aguçado do que nunca, sem embandeirar, porém, em statements políticos fáceis nem se
preocupando em encontrar vítimas ou culpados numa qualquer lógica de “bem e
mal”, nos seus filmes e nas suas personagens ecoando sempre a célebre e
renoiriana afirmação de que “Chacun à ses
raisons”.
Como em todos os filmes do romeno, cada acontecimento
narrativo é uma caixa de pandora imprevisível que, numa lógica matrioska, vai espoletando uma série de
acontecimentos subsequentes e que se influenciam reciprocamente sem que as
personagens os consigam controlar, antes se vendo na necessidade de remediar
consequências não desejadas e apagar as pontas soltas. É a partir do incidente
com Eliza, a filha de Romeo, que um conjunto de eventos se precipita e faz
entrar definitivamente em erupção todos os problemas e mal-entendidos
adormecidos daquela família “à beira de um ataque de nervos” – da família mas
não só, pois os seus problemas estão intrinsecamente ligados aos de toda uma
sociedade ou, se quisermos, de uma “grande família” chamada Roménia (a teia de
acontecimentos “familiares” a formar-se, entrecruzadamente, com a teia da
corrupção na escola, no hospital, na polícia).
Um dos maiores pontos de interesse do cinema de Mungiu é o
modo como os seus filmes se alicerçam sempre num princípio de, digamos, “dúvida
metódica”: nem as personagens, nem o espectador têm alguma vez a certeza
absoluta dos factos e das motivações de cada um, por mais que os dispositivos
“de investigação” até sejam colocados em cena, e esse é o trick irónico e deveras inteligente utilizado pelo romeno (exemplo
paradigmático é o print screen que
Romeo pede aos polícias, cinefilamente evocador do Blow-Up de Antonioni). Dúvida, essa, que naturalmente adensa o
mistério em que os seus filmes nos submergem e que jamais nos deixa: donde vêm
(ou para… onde “vão”?), afinal, aquelas pedras (com uma eventual ressonância
bíblica)? E terá a atitude de Matei (o filho de Sandra) na cena com Romeo no
parque alguma a coisa a dizer sobre isso?
Em registo realista paredes-meias com o melodrama, a
realidade particular da família de Romeo funciona apenas como o “laboratório”
para uma reflexão mais abrangente sobre a sociedade romena, os seus
ressentimentos, os seus complexos, os seus anseios. No caso, e mais do que o
papel dos pais na educação dos filhos, o romeno capta a visão descrente de uma
geração (a dos pais de Eliza, que é, note-se, sensivelmente a mesma de Mungiu…)
sobre uma Roménia pós-comunista mais rica e justa, uma total desesperança de
que ainda é possível mudar algo para melhor quando eles próprios (a geração de
Romeo) não o conseguiram (e, pior, se renderam ao estado das coisas). Daí o “ir
para fora”, a “Europa” (perspectiva interessante que nos faz lembrar a nós,
europeus, como, apesar de tudo, ainda vivemos num local bem agradável) e os
“Kensington Gardens” do “primeiro mundo” que Romeo não se cansa de lembrar à
filha, de a fazer ver como o seu país “não é para novos” (pressão já explorada
em filmes como Occident ou Para Lá das Colinas).
Mas, uma vez mais, a dúvida: será unicamente pelo futuro da
filha que Romeo deseja a sua partida ou não será apenas essa a forma de arrumar
o assunto familiar e começar, finalmente, uma nova vida com a amante? At the end of the day (e, não sendo um
dia, o filme passa-se em pouco mais do que isso), todos fazem o seu exame, todas passam por testes e provas
de resistência, sendo que, para Mungiu, e ao contrário do que se ouve Romeo
dizer à filha, os resultados são aquilo que menos interessa. O Exame é um dos grandes filmes de 2016.
Boi
Neon (G. Mascaro)
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★★★
|
Cafe
Society (W. Allen)
|
★★★
|
O
Ornitólogo (J. P. Rodrigues)
|
★★★
|
O
Bosque de Blair Witch (A. Wingard)
|
★★
|
Tão
Só o Fim do Mundo (X. Dolan)
|
★
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A
Toca do Lobo (Catarina Mourão)
|
★★★★
|
O
Exame (C. Mungiu)
|
★★★
|
Arrival
(D. Villeneuve)
|
★★
|
Victoria
(S. Schipper)
|
★★★
|
Elle
(P. Verhoeven)
|
★★★
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