(Les diaboliques, 1955, H.-G. Clouzot)
"Na narrativa noir, a figura da femme fatale e o mal que lhe está intrinsecamente associado são habitualmente entendidos como uma ameaça, não apenas à integridade moral do protagonista masculino, mas à própria identidade ontológica deste. Enquanto signo da perdição inevitável do homem, em consequência da sua capitulação perante a pulsão destrutiva do desejo, a mulher parece nada mais ser do que um sintoma, um mero efeito que materializa o estado de pecado do homem. Mas, a ser... apenas a consequência de um ato praticado pelo homem, a mulher em si mesma não existiria, resultaria desprovida de qualquer existência autónoma. (…) Se, contudo, (…) concebermos o sintoma (…) enquanto formação significante determinada, que confere ao sujeito a sua verdadeira consistência ontológica (…), então toda a a relação se volta sobre si mesma: se o sintoma se dissolve, o próprio sujeito perde o chão debaixo dos pés, desintegra-se.
Neste sentido, afirmar que ‘a mulher é um sintoma do homem’ passa então a significar que o próprio homem apenas existe através da mulher enquanto sintoma de si mesmo – o mesmo é dizer, toda a sua consistência ontológica passa a depender do seu sintoma (…), e todo o seu ser reside na mulher que é esse sintoma. Ela, pelo contrário, mantém em si algo que escapa ao homem, que se mantém preservado nela e está para além da sua relação com o homem (…). É justamente esse algo que só a ela pertence e só ela domina que faz da femme fatale não um ser passivo, como a mulher cativa, mas um ser dotado da plena capacidade autónoma de agir. Uma capacidade que não conhece limites e vai ao ponto de corporizar a própria pulsão de morte, entendida como uma atitude ética radical e absoluta, em que não há margem para qualquer tipo de compromisso.
A fatalidade de que nos fala a expressão que designa a principal figura do noir não recai, portanto, e apenas – contrariamente ao que é entendido por alguma crítica cinematográfica – na figura do protagonista masculino. (…) A femme fatale pode ser, e também é, um reflexo dos medos maculinos, mas significa algo mais do que isso, porque as suas ações sempre se revelam igualmente fatais para ela mesma. Na expressão femme fatale podemos, portanto, detetar a presença da morte como destino inevitável da personagem, um destino que ela própria constrói ao longo de um processo que se configura como uma forma de inquebrantável resistência contra os papéis femininos que eram ideologicamente impostos na sociedade americana do pós-guerra (…).
(Abílio Hernandez Cardoso, in “Dar a ver o que nos cega”, 2019)
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