Não há tempo para despedidas: o primeiro (último?) álbum póstumo de Mac Miller, luminoso apesar de melancólico (como era seu timbre), é demasiado belo para isso.
"Circles" no ípsilon da última sexta-feira
Link: https://www.publico.pt/2020/01/31/culturaipsilon/critica/desenhar-circulo-perfeito-1901557
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Como desenhar um círculo perfeito
Desde logo porque, como insinuávamos à data do seu
trágico desaparecimento, Circles vem
confirmar – confirmação que nada encerra ou confina, antes uma espécie de movimento
perpétuo, porta infinita que só mantém no ouvinte a ruminação sobre o que,
musicalmente falando, viria a seguir – o prosseguimento da evolução do seu som,
uma das mais interessantes de acompanhar na última década. The Divine Feminine (2016) havia marcado a sua guinada em relação ao
hip-hop simplista (nos processos sample-based
e na discursividade adolescente) dos primeiros anos de carreira (o que não
impede de lá se acharem algumas belas peças, sobretudo a partir de Macadelic, 2012); Swimming (2017), mais do que confirmar essa mudança, foi um (vários,
na verdade) degrau acima na construção de um som próprio (aproximado do funk, enamorado
pelo indie e pela pop mais inventiva) e na exploração do canto, que, ainda com
algumas arestas por limar, passava a ter o mesmo protagonismo do que o rap. Circles, fechando esse círculo perfeito,
afirma-o agora definitivamente como um singer-songwriter
(os trechos rappados contam-se pelos dedos de uma mão) na tradição das vozes
clássicas do rock/pop/folk americanos, a ela lhe adicionando a energia e o groove
da música negra (o hip-hop, o funk, o R&B).
Também por isso, ou justamente
por isso, é que a evolução do seu som, mais do que nunca definido pelos
recantos harmónicos percorridos, pelos arranjos caprichosos, pelo primor
melódico, se consuma em Circles em todo
o seu esplendor: digamos, para simplificar, que este é o trabalho “mais
Beatles” que lhe ouvimos (“Good News”, single que anunciou o álbum e deixou
meio mundo comovido, e “Everybody”, magnífica recriação do original de Arthur
Lee dos Love, são pequenos monumentos a rondar a perfeição). E não só os
Beatles-banda; também, ou sobretudo, o trabalho a solo dos seus membros, Lennon
e Harrison à cabeça (é da autoria deste último, aliás, a raridade “Circles”, canção
gravada pela banda na Índia mas que só viu a luz do dia no álbum a solo Gone Troppo, e que tem como tema central
a… reencarnação). Miller que, recorde-se, tinha em Sgt. Pepper's Lonely
Hearts Club Band, mas também em The
Freewheelin' Bob Dylan, dois dos seus álbuns dilectos; Miller que tem espalhadas
aos quatros ventos da net versões acústicas
de “Lua” e “First Day Of My Life” (Bright
Eyes), “Vienna” (Billy Joel) ou “Isn't she lovely?” (S. Wonder).
Citamos os exemplos deste património musical e afectivo para sublinhar uma das mais exuberantes certezas que Circles carrega: de 2016 (The Divine Feminine) a 2018, Miller vinha atravessando um notório processo de evolução e aperfeiçoamento como (multi-)instrumentista, cantor, compositor, definitivamente focado em tirar partido da sua versatilidade e do seu ouvido ágil para criar paisagens harmónicas que, aparentemente minimalistas (o tal trabalho de arranjos, “invisível” mas invariavelmente rico e minucioso), se revestem, de par com a cândida vertigem nas palavras (em que os “You” parecem ter como destinatário tanto uma amada como o ouvinte ou, sobretudo, um desdobramento dele próprio), de uma grande profundez emocional. Nesse trajecto evolutivo assumindo central protagonismo os sintetizadores (múltiplas camadas que se erguem e desmancham com a mesma suavidade), as guitarras e, acima de tudo, o piano – Miller era um grande baladista ao piano em potência (não foi por acaso que Elton John lhe prestou tributo em concerto), e as versões acústicas de "Dunno" ou "Nothing From Nothing" (outra cover, esta de Billy Preston) estão aí para o lembrar. Donde a matiz folk que, ainda ausente ou tímida em Swimming, perpassa agora “Hand Me Downs”, “That’s On Me” ou “Surf”, noutros momentos assomando lampejos de uma pop barroca ou soft rock (o piano “cantado” de Harry Nilsson; o psicadelismo lírico dos Beach Boys), da britpop dos Oasis ou do Prince de que era confesso admirador (“Hands”).
Citamos os exemplos deste património musical e afectivo para sublinhar uma das mais exuberantes certezas que Circles carrega: de 2016 (The Divine Feminine) a 2018, Miller vinha atravessando um notório processo de evolução e aperfeiçoamento como (multi-)instrumentista, cantor, compositor, definitivamente focado em tirar partido da sua versatilidade e do seu ouvido ágil para criar paisagens harmónicas que, aparentemente minimalistas (o tal trabalho de arranjos, “invisível” mas invariavelmente rico e minucioso), se revestem, de par com a cândida vertigem nas palavras (em que os “You” parecem ter como destinatário tanto uma amada como o ouvinte ou, sobretudo, um desdobramento dele próprio), de uma grande profundez emocional. Nesse trajecto evolutivo assumindo central protagonismo os sintetizadores (múltiplas camadas que se erguem e desmancham com a mesma suavidade), as guitarras e, acima de tudo, o piano – Miller era um grande baladista ao piano em potência (não foi por acaso que Elton John lhe prestou tributo em concerto), e as versões acústicas de "Dunno" ou "Nothing From Nothing" (outra cover, esta de Billy Preston) estão aí para o lembrar. Donde a matiz folk que, ainda ausente ou tímida em Swimming, perpassa agora “Hand Me Downs”, “That’s On Me” ou “Surf”, noutros momentos assomando lampejos de uma pop barroca ou soft rock (o piano “cantado” de Harry Nilsson; o psicadelismo lírico dos Beach Boys), da britpop dos Oasis ou do Prince de que era confesso admirador (“Hands”).
E se a angústia, a paranóia, a morte estão tão
presentes em Swimming como agora em Circles (tendo a produção de ambos os
discos arrancado no mesmo período, muito do que se ouve no segundo foi já
composto posteriormente ao lançamento do primeiro), elas nunca são, porém,
miserabilistas; é sempre uma melancolia luminosa, impossivelmente optimista, que,
no final do dia, permanece (como o Blue Slide Park: “blue” mas simultaneamente destino de brincadeiras...). Miller assim
figurando, provavelmente, como o “músico deprimido” mais positivo da música
popular americana recente. Neste particular, Circles (que, em comunicado oficial, foi apresentado como tendo
sido idealizado por Miller como um “irmão” do álbum anterior, donde resulta essa
curiosa, algo sinistra também, ideia de Swimming
in… Circles), embora partilhando sensivelmente
do mesmo estado de espírito, parece vindo de alguém menos reactivo, menos efusivo
também, agora aparentemente pacificado ou, pelo menos, resignado com a ideia de
que o mal de vivre é coisa que vai e
vem conforme a onda, de que um mantra modesto como o de “That’s On Me” (“I'll let it go / I'll cut the strings /
Today I'm fine / I don't know where I've been lately, but I've been alright / I
said good morning this morning and I'll say good night”) é paradigmático (e
por falar em circles, “círculos” ou
“voltas”, vem-nos à memória uma frase batida…: “Pouco a pouco o passo / Faz-se vagabundo / Dá-se a volta ao medo / Dá-se a volta ao mundo”).
Miller era um
músico de espírito curioso, atento, entusiasmado, quase até de uma forma
infantil, pelos sons em volta, e pouco ou nada disciplinado pelos canônes ou as
ideias-feitas sobre a música popular. Se uma qualquer retro-futurologia se
afigura, nestes assuntos, pura perda de tempo, como não efabular, ainda assim,
sobre o tipo de experiências que poderiam advir se Miller, em vez de criar no
ninho (Pittsburgh, Los Angeles) que tanta matéria prima lhe deu, se decidisse,
a dada altura, a passar uma temporada no Mali, no Japão, na Índia (vem-nos à
cabeça o Wonderwall Music de
Harrison)? Por onde poderia Miller evoluir na escrita – capaz ainda de ser
burilada, assim como a sua extensão vocal – quando se visse num período de maior
estabilidade e conseguisse sair “fora” de si mesmo e observar o mundo de outros
prismas?
Numa das escassas entrevistas sobre o novo álbum, Jon Brion – veterano
produtor com quem Miller tinha trabalhado já em Swimming – acaba, emocionado, a dizer que tinha uma pilha de
instrumentos propositadamente de lado para Miller utilizar num futuro próximo,
que há muito não se sentia tão entusiasmado por trabalhar com alguém. “Circles”
é, como “Congratulations” e “Come Back To Earth” o eram, a terceira faixa inaugural
em três discos que se faz despida de qualquer percussão, a voz protagonista de
Miller embalada numa envolvência de grande apuro melódico e as suas palavras
centrais para o entendimento do universo do disco: terá ido Miller a tempo de
assim definir o alinhamento do disco? Ou terá sido de Brion a intuição
semelhante à nossa? Certo é que, também nesta aparente coincidência, o círculo
se completa, perfeitamente.
Naquela funesta madrugada,
Miller havia feito, horas antes, uma publicação no “Twitter” confessando que,
para o final de “So It Goes”, última faixa de Swimming, havia pedido a Jon Brion que a tocasse como se fosse uma
“ascension into heaven”. É difícil
não estremecer quando, logo no primeiro verso de Circles, lhe ouvimos: “Well,
this is what it look like right before you fall”. A vida dá muitas voltas e
a de Mac Miller, escandalosamente curta, foi das mais vibrantes e intensas da
música americana da última década. Mas bom, “No matter where life takes me / Find me with a smile”, responderia
ele.
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