segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Everybody's gotta live


Não há tempo para despedidas: o primeiro (último?) álbum póstumo de Mac Miller, luminoso apesar de melancólico (como era seu timbre), é demasiado belo para isso.

"Circles" no ípsilon da última sexta-feira

Link: https://www.publico.pt/2020/01/31/culturaipsilon/critica/desenhar-circulo-perfeito-1901557


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Como desenhar um círculo perfeito
 
Porque os afectos e a idealização de uma intimidade partilhada por público e artista sempre tendem a toldar a apreciação de um tipo de objecto por natureza votado à aclamação acrítica como é o caso de um objecto póstumo, talvez importe começar pelo fim: o que faz de Circles, primeiro álbum póstumo de Malcolm James McCormick (não se sabe se o último, pois que, além de eventual trabalho adicional em nome próprio, falou-se já de um EP “MacLib” com Madlib), uma vera obra prima não é o facto de ser “um álbum póstumo de Mac Miller”. Em rigor, o espanto de disco que Circles é (e que, muito curiosamente, não deixa de evocar “Perfect Circle”, canção de GO:OD AM, 2015) afirma-se por direito próprio, tivesse aparecido agora ou quando Miller, diabrete franzino, fazia videoclips com os amigos no Blue Slide Park da sua Pittsburgh natal (esse onde a sua família se pronunciou, numa rara aparição pública, aquando da vigília organizada pelos fãs e cujo rebaptismo aguarda ainda pelas diligências do City Council local – entretanto, a Google e a Apple anteciparam-se e é agora “Mac Miller's Blue Slide Park" o nome do parque que se pode encontrar à face da Beechwood Blvd).
 
Desde logo porque, como insinuávamos à data do seu trágico desaparecimento, Circles vem confirmar – confirmação que nada encerra ou confina, antes uma espécie de movimento perpétuo, porta infinita que só mantém no ouvinte a ruminação sobre o que, musicalmente falando, viria a seguir – o prosseguimento da evolução do seu som, uma das mais interessantes de acompanhar na última década. The Divine Feminine (2016) havia marcado a sua guinada em relação ao hip-hop simplista (nos processos sample-based e na discursividade adolescente) dos primeiros anos de carreira (o que não impede de lá se acharem algumas belas peças, sobretudo a partir de Macadelic, 2012); Swimming (2017), mais do que confirmar essa mudança, foi um (vários, na verdade) degrau acima na construção de um som próprio (aproximado do funk, enamorado pelo indie e pela pop mais inventiva) e na exploração do canto, que, ainda com algumas arestas por limar, passava a ter o mesmo protagonismo do que o rap. Circles, fechando esse círculo perfeito, afirma-o agora definitivamente como um singer-songwriter (os trechos rappados contam-se pelos dedos de uma mão) na tradição das vozes clássicas do rock/pop/folk americanos, a ela lhe adicionando a energia e o groove da música negra (o hip-hop, o funk, o R&B).
 
Também por isso, ou justamente por isso, é que a evolução do seu som, mais do que nunca definido pelos recantos harmónicos percorridos, pelos arranjos caprichosos, pelo primor melódico, se consuma em Circles em todo o seu esplendor: digamos, para simplificar, que este é o trabalho “mais Beatles” que lhe ouvimos (“Good News”, single que anunciou o álbum e deixou meio mundo comovido, e “Everybody”, magnífica recriação do original de Arthur Lee dos Love, são pequenos monumentos a rondar a perfeição). E não só os Beatles-banda; também, ou sobretudo, o trabalho a solo dos seus membros, Lennon e Harrison à cabeça (é da autoria deste último, aliás, a raridade “Circles”, canção gravada pela banda na Índia mas que só viu a luz do dia no álbum a solo Gone Troppo, e que tem como tema central a… reencarnação). Miller que, recorde-se, tinha em Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, mas também em The Freewheelin' Bob Dylan, dois dos seus álbuns dilectos; Miller que tem espalhadas aos quatros ventos da net versões acústicas de “Lua” e “First Day Of My Life” (Bright Eyes), “Vienna” (Billy Joel) ou “Isn't she lovely?” (S. Wonder).

Citamos os exemplos deste património musical e afectivo para sublinhar uma das mais exuberantes certezas que Circles carrega: de 2016 (The Divine Feminine) a 2018, Miller vinha atravessando um notório processo de evolução e aperfeiçoamento como (multi-)instrumentista, cantor, compositor, definitivamente focado em tirar partido da sua versatilidade e do seu ouvido ágil para criar paisagens harmónicas que, aparentemente minimalistas (o tal trabalho de arranjos, “invisível” mas invariavelmente rico e minucioso), se revestem, de par com a cândida vertigem nas palavras (em que os “You” parecem ter como destinatário tanto uma amada como o ouvinte ou, sobretudo, um desdobramento dele próprio), de uma grande profundez emocional. Nesse trajecto evolutivo assumindo central protagonismo os sintetizadores (múltiplas camadas que se erguem e desmancham com a mesma suavidade), as guitarras e, acima de tudo, o piano – Miller era um grande baladista ao piano em potência (não foi por acaso que Elton John lhe prestou tributo em concerto), e as versões acústicas de "Dunno" ou "Nothing From Nothing" (outra cover, esta de Billy Preston) estão aí para o lembrar. Donde a matiz folk que, ainda ausente ou tímida em Swimming, perpassa agora “Hand Me Downs”, “That’s On Me” ou “Surf”, noutros momentos assomando lampejos de uma pop barroca ou soft rock (o piano “cantado” de Harry Nilsson; o psicadelismo lírico dos Beach Boys), da britpop dos Oasis ou do Prince de que era confesso admirador (“Hands”).
 
E se a angústia, a paranóia, a morte estão tão presentes em Swimming como agora em Circles (tendo a produção de ambos os discos arrancado no mesmo período, muito do que se ouve no segundo foi já composto posteriormente ao lançamento do primeiro), elas nunca são, porém, miserabilistas; é sempre uma melancolia luminosa, impossivelmente optimista, que, no final do dia, permanece (como o Blue Slide Park: “blue” mas simultaneamente destino de brincadeiras...). Miller assim figurando, provavelmente, como o “músico deprimido” mais positivo da música popular americana recente. Neste particular, Circles (que, em comunicado oficial, foi apresentado como tendo sido idealizado por Miller como um “irmão” do álbum anterior, donde resulta essa curiosa, algo sinistra também, ideia de Swimming inCircles), embora partilhando sensivelmente do mesmo estado de espírito, parece vindo de alguém menos reactivo, menos efusivo também, agora aparentemente pacificado ou, pelo menos, resignado com a ideia de que o mal de vivre é coisa que vai e vem conforme a onda, de que um mantra modesto como o de “That’s On Me” (“I'll let it go / I'll cut the strings / Today I'm fine / I don't know where I've been lately, but I've been alright / I said good morning this morning and I'll say good night”) é paradigmático (e por falar em circles, “círculos” ou “voltas”, vem-nos à memória uma frase batida…: “Pouco a pouco o passo / Faz-se vagabundo / Dá-se a volta ao medo / Dá-se a volta ao mundo”).
 
Miller era um músico de espírito curioso, atento, entusiasmado, quase até de uma forma infantil, pelos sons em volta, e pouco ou nada disciplinado pelos canônes ou as ideias-feitas sobre a música popular. Se uma qualquer retro-futurologia se afigura, nestes assuntos, pura perda de tempo, como não efabular, ainda assim, sobre o tipo de experiências que poderiam advir se Miller, em vez de criar no ninho (Pittsburgh, Los Angeles) que tanta matéria prima lhe deu, se decidisse, a dada altura, a passar uma temporada no Mali, no Japão, na Índia (vem-nos à cabeça o Wonderwall Music de Harrison)? Por onde poderia Miller evoluir na escrita – capaz ainda de ser burilada, assim como a sua extensão vocal – quando se visse num período de maior estabilidade e conseguisse sair “fora” de si mesmo e observar o mundo de outros prismas?
 
Numa das escassas entrevistas sobre o novo álbum, Jon Brion – veterano produtor com quem Miller tinha trabalhado já em Swimming – acaba, emocionado, a dizer que tinha uma pilha de instrumentos propositadamente de lado para Miller utilizar num futuro próximo, que há muito não se sentia tão entusiasmado por trabalhar com alguém. “Circles” é, como “Congratulations” e “Come Back To Earth” o eram, a terceira faixa inaugural em três discos que se faz despida de qualquer percussão, a voz protagonista de Miller embalada numa envolvência de grande apuro melódico e as suas palavras centrais para o entendimento do universo do disco: terá ido Miller a tempo de assim definir o alinhamento do disco? Ou terá sido de Brion a intuição semelhante à nossa? Certo é que, também nesta aparente coincidência, o círculo se completa, perfeitamente.
 
Naquela funesta madrugada, Miller havia feito, horas antes, uma publicação no “Twitter” confessando que, para o final de “So It Goes”, última faixa de Swimming, havia pedido a Jon Brion que a tocasse como se fosse uma “ascension into heaven”. É difícil não estremecer quando, logo no primeiro verso de Circles, lhe ouvimos: “Well, this is what it look like right before you fall”. A vida dá muitas voltas e a de Mac Miller, escandalosamente curta, foi das mais vibrantes e intensas da música americana da última década. Mas bom, “No matter where life takes me / Find me with a smile”, responderia ele.

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