"A conflitualidade gaulesa desenvolve-se a partir de dois eixos que se mantêm até hoje. Em primeiro lugar, um nacionalismo que atravessa todo o espectro ideológico e que, alimentado por une certaine idée de la France, tanto se manifesta na politique de grandeur do general De Gaulle como na force tranquille de Mitterrand (que, em 1985, encomendou a construção de uma estátua de Dreyfus, provocando algumas reacções nos meios militares), na visão de uma Joana d’Arc racista e xenófoba difundida pelo clã Le Pen, pai e filha, até aos protestos antiamericanos e antiglobalização que levaram à vandalização de restaurantes McDonald’s pelos agricultores vindos do pays réel, capitaneados por Joseph Bové, um sindicalista de cachimbo nos lábios e fartos bigodes à Astérix. França é dos países em que a vida política e o debate público mais gravitam em torno da frustrada (e frustrante) tentativa de resposta à famosa pergunta de Renan, o que é uma nação?, e, mais precisamente, à pergunta eterna, sempre insatisfeita, sobre o que é a nação francesa e qual o seu destino.
A indagação conduz a resultados próximos de um transtorno bipolar, com alternância de estados eufóricos (o culto dos grandes heróis, as grandes celebrações patrióticas, a exaltação da língua e da cultura francesas, da excelência culinária e do requinte da moda, as vitórias no futebol) e de momentos de depressão profunda ou vergonha autopunitiva (a dominação colonial racista, o colaboracionismo de Vichy, o drama dos pieds noirs, os atentados terroristas em Paris, o drama da “integração” de minorias cada vez mais numerosas). Entre os pólos extremados da euforia e da vergonha, prevalece de permeio um sentimento pardacento, crepuscular, o ennui acinzentado nascido da autoconsciência da indisfarçável derrocada — da França e da Europa —, o que já deu azo ao surgimento de uma disciplina a que chamam “declinismo” e que, com cambiantes vários, tem numerosos cultores, desde pensadores profissionais como Marcel Gauchet a escritores pseudomalditos como Michel Houellebecq.
O segundo eixo revelado ou potenciado pelo caso Dreyfus relaciona-se com o estatuto dos intelectuais ou, talvez melhor, com a intelectualização de toda a vida nacional, pública e privada. França é um país em que uma vulgar conversa de um casal ou um diálogo corriqueiro entre pais e filhos facilmente resvalam num interminável debate filosófico, com argumentos mais do que racionais de ambos os lados, expostos com rigor cartesiano e limpidez cristalina, para no final todos regressarem confortavelmente às suas posições de origem, perfeitas e inamovíveis. Na esfera pública, os intelectuais têm uma aura profética e quase sacral, que noutras paragens é reservada às celebridades pop (…).
A questão, todavia, é mais funda e não se circunscreve aos mandarins da academia ou aos escritores que todas as noites monologam nas televisões em horário nobre. A questão é digamos assim, de intelectualização de toda a sociedade, de cima a baixo, já que a noção de “intelectual” se vulgarizou e democratizou ao extremo: em cada francês há um intelectual público em potência, ávido de auditório e plateia, com as velhas azedas das pracetas ou os empregados de café a adorarem arvorar-se em savants com opiniões definitivas e inquestionáveis sobre tudo e mais algo coisa, tendo o irritantíssimo hábito de as expressarem mesmo quando não lhas pedimos, e, pior ainda, como se proferissem verdades últimas e revelações proféticas. França, país sem emenda, terra orgulhosa, insuportável. Mas é por isso, e muito mais, que a amamos tanto, assim perdidamente. A nossa mulher fatal (…)".
António Araújo, "O caso Dreyfus, manual de operações" in Público/ípsilon, 31-01-2020.
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