terça-feira, 29 de dezembro de 2020

fantasmas que amamos


(Fantasmi a Roma, 1961, Antonio Pietrangeli)


Os fantasmas andam alegremente à solta, repetem rotinas fatais, debruçam-se sobre rear windows romanas para espreitarem as mais belas mulheres durante o serão. Uma vida frugal e feliz até ao momento em que o seu habitat fica em risco – o vetusto palácio em que vivem no centro da vecchia Roma prepara-se para ser vendido pelo sobrinho (Mastroianni, também no papel de um dos espirituosos fantasmas, num desempenho ambivalente, oportunista mas sensível, ganancioso e culto) do falecido dono aristocrático e colocado ao serviço de um gigantesco empreendimento imobiliário de um shopping (isto nos anos sessenta, sessenta...). As vias legais a que os fantasmas recorrem não resultam (são derrotadas ante o dinheiro e a corrupção), pelo que terão de lobrigar uma solução alternativa: pedem os bons ofícios do seu colega fantasma “Caparra” (provável alcunha para Giovanni Baglione, histórico rival de Caravaggio) para pintar um fresco num tecto falso do edifício de modo a que este seja classificado e, assim, impedida a venda. É ambígua a personagem do perito e crítico de pintura que, chamado ao local, declara que o fresco não é de Caparra mas de… Caravaggio. O negócio fica definitivamente enterrado e a preservação do palácio assegurada. A arte salva a arte, a crítica salva a arte – e o cinema, as salas de cinema por onde passeiam os fantasmas das nossas vidas (e da outra, talvez maior, a colectiva), quem os salva?

Com o poder político e a esmagadora parte da sociedade civil indiferentes ao encerramento galopante das salas à conta do efeito de sucção das plataformas de streaming, com algumas das publicações de referência a cobrirem e a atribuirem estrelas a filmes cuja única e longa sessão de estreia acontece numa televisão (ou num telemóvel, ipad, desde que o “consumo de conteúdos” nas idas ao quarto-de-banho fique assegurado) enquanto esquizofrenicamente choram o crepúsculo do cinema em sala como “experiência colectiva” e o diabo a quatro, eis uma triste mas previsível constatação: a salvação, a existir, virá sempre do mesmo sítio, da arte e dos que a fazem, daqueles que se recusam a arredar pé dos palácios (dos ecrãs) onde vivem. Comédia inteligentíssima, profundamente cinéfila, logo fantasmática (ou vice-versa), antes sequer da existência propriamente dita (passe o oxímoro) dos fantasmas. Mas não desesperemos: tudo está bem quando acaba bem, as salas não desaparecerão, assim os fantasmas que habitam os filmes que amamos (A Rosa Púrpura do Cairo, por exemplo…) queiram começar a pôr o pé fora do ecrã… Esperemos. Sentados. No sofá, em frente à “plataforma”.

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