segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

2022 - FLICKS



Os melhores filmes de 2022 | À pala de Walsh (apaladewalsh.com)


Os anos passam, o critério não: relembro que, aqui, só são elegíveis filmes estreados em sala. “Um mau filme em sala é sempre melhor do que um bom filme no portátil”? Se os Cahiers ainda não o escreveram, é porque os Cahiers já não são os mesmos. PUM! PIM!

Recordo 2016 como um annus horribilis para a música (Bowie, Phife Dawg, Prince, Cohen, Sharon Jones, George Michael, Pierre Boulez…). 2022 foi, embora numa menor escala, a vez do cinema. Morreram os donos disto tudo: Jean-Luc Godard, Monica Vitti. E logo a seguir Peter Bogdanovich, Sidney Pottier. Foi o last picture show para muitos de nós. E não apenas os velhos, também uma actriz que muito prometia: Charlbi Dean, deslumbrante no primeiro acto (o único que se aproveita) dessa oportunista feira de horrores chamada “Triângulo da Tristeza”. Deste prisma, 2022 é um ano irremediavelmente triste. Deste e de outros; o da Ucrânia, por exemplo, barbaramente atacada por um regime de gangsters. Estreado em 2018, Donbass só me chegou este ano por via da sua reposição momentânea em sala. Realizado por Loznitsa três anos antes da invasão, possui esse estranho efeito temporal de antecipar algo que, em rigor, já parcialmente existia (a ocupação da Crimeia acontecera em 2014) mas que só se concretizaria totalmente num momento posterior, isto é, no momento (2022) em que tive a oportunidade de o ver. Eis-nos, em Donbass, num limbo confuso, entre um ainda-passado e um já-futuro que nunca é resolvido, tal como a própria soberania do território filmado (ucraniano, russo, “república autónoma”). E talvez que a melhor cena do ano venha mesmo do cineasta ucraniano, provavelmente imperceptível para muitos espectadores (até pela sua curtíssima duração): no momento em que a turba humana rodeia um ucraniano na rua, humilhando-o e agredindo-o, Loznitsa, explorando a profundidade de campo, capta um homem, sozinho e silencioso, a vir, de longe, no sentido oposto ao da multidão. Até que com ela se cruza, furando-a compenetradamente; passando-se para “o outro lado”. É a única pessoa que o faz em toda essa cena. Como a personagem que caminha no sentido contrário ao do exército n’ O Império dos Sentidos de Oshima, eis o rebelde desconhecido que se recusa a compactuar com a bestialidade, que rema contra a maré, fazendo o seu próprio (e arriscado) caminho de dissidência. Para ver e rever.
Sobre O Bom Patrão: Ah, a Comédia…! Uma lição de fazer muito com pouco, de como o slapstick e o cartoon podem ser mais inteligentes do que todas as piadas inteligentes juntas. Como me dizia uma pessoa querida por ocasião da estreia do filme, “É isto que faz falta, aquela coisa do Bucha e Estica, pontapés no rabo e portas a bater na cara das personagens!”.
Já fora do ecrã, dois grandes acontecimentos: a primeiríssima edição de Introdução a Uma Verdadeira História do Cinema (Sr. Teste), de Godard, e o aparecimento no underground virtual de um dos dois filmes realizados por Monica Vitti, Scandalo Segreto (1990) - legendas, quem dá? É o meu segundo desejo cinéfilo para 2023… O primeiro, o de que todos os cineastas e actores iranianos voltem a poder fazer o que amam. Jin, jiyan, azadi!
“(...) o plano [para o curso de cinema a leccionar] era fazer uma espécie de pesquisa; da minha parte, considerava alguns temas, como o que houve de principal no cinema, que se chama (...) montagem. Esse aspecto precisa de ficar oculto, pois é algo muito importante: consiste em relacionar as coisas entre si e fazer com que as pessoas as vejam… uma situação evidente… quero dizer… um homem adulterado, enquanto não tiver visto a sua mulher com outro homem, isto é, enquanto não tiver duas fotos, a do outro e a da sua mulher, nada viu. É sempre preciso ver duas vezes…”.
Jean-Luc Godard (1930-∞), Introdução a uma Verdadeira História do Cinema

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