Se "literatura erótica" quiser dizer alguma coisa - pergunto eu, que tenho o Henry Miller como um grande e bom amigo desde os meus primeiros anos de faculdade -, o Musil - sim, o Musil - tem muita coisa para ensinar aos exploradores do género. Senão, vejam (reparem bem - isto é delicioso - no contraste das imagens sugeridas com o assunto sobre que Ulrich perora):
"Bonadea teve de compor qualquer coisa na liga, e viu-se obrigada a olhar para Ulrich com a cabeça ligeiramente inclinada para trás, de modo que, escapando ao seu olhar, um mundo de contrastes emergiu à volta do seu joelho, feito de orlas rendadas, meias lisas, dedos tensos e o reflexo de pérola, relaxado e suave, da pele.
Ulrich apressou-se a acender outro cigarro, e continuou:
- O ser humano não é bom, é sempre bom. A diferença é enorme, compreendes? As pessoas sorriem geralmente perante esta sofística do amor-próprio, mas devíamos extrair dela a conclusão de que o ser humano é incapaz de fazer o mal, a única coisa que faz é poder produzir efeitos maus. A aceitação deste princípio pode ser o verdadeiro ponto de partida a uma moral social.
Bonadea voltou a alisar a saia com um suspiro, levantou-se e procurou acalmar-se com mais um golo do fogo de ouro pálido.
(...)
Sem saber bem como, Bonadea deixou cair um sapato. Ulrich curvou-se para o apanhar e o pé, com os seus dedos quentes como os de uma criança pequena, veio ao encontro do sapato que tinha na mão.
- Deixa lá, que eu calço! - disse Bonadea, continuando a oferecer-lhe o pé.
- Em primeiro lugar, há problemas de ordem psiquiátrica e jurídica - continuou Ulrich, implacável, enquanto da perna dela lhe subia ao nariz o odor de uma responsabilidade condicionada. (...)".
Robert Musil, O homem sem qualidades, I, Dom Quixote, 2008, p. 357.
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