L'Appolonide: Memórias de um Bordel (2011), Bertrand Bonello.
O Caminho Largo, um blog dedicado ao Cinema, lançou uma interessante iniciativa convidando alguns bloggers para escolherem, ao seu critério, três filmes e um realizador cujos tópicos e obra reflectissem/apelassem/trabalhassem o tema da Amizade.
Tive a honra e o prazer de ser um dos convidados para a iniciativa e, pese embora a natureza sintética das escolhas - como assim pretendiam os autores do convite, cujo fito foi, sobretudo, o de deixar o flanco ao pensamento e à reflexão de cada um perante as escolhas dos outros -, creio ser conveniente fazer um brevíssimo comentário justificativo, sob pena de as mesmas poderem querer dizer tudo e não dizerem nada, especialmente quando o tema em causa é tão vasto e complexo.
Como não foram definidos critérios, nem rígidos nem flexíveis, à partida, decidi fazer uma selecção ditada unica e exclusivamente pela liberdade do gosto e por uma ou outra peculiaridade resultante da relação pessoal com a escolha em causa (é o caso do realizador eleito). Escusado será dizer que não tenho a pretensão de acreditar que estes filmes ou este realizador sejam, de facto, "os melhores" filmes ou "o melhor" realizador na representação de tema tão vasto como era o proposto.
A Eternidade e Um Dia (1998, Theo Angelopoulos)
A Amizade como inquebrantável esperança, como última salvação para a vida - ao menos, espiritual - de um homem. Prova de que as relações humanas podem surpreender quando menos esperança (justamente) nela depositamos, ou quando pensamos já tudo ter vivido e nada mais de iluminante esperar para as nossas vidas - no caso, a personagem interpretada por Bruno Ganz não espera mesmo nada, pois já sabe, desde o início do filme, que irá ser internado em breve, muito provavelmente como destino final (fatal). No filme de Angelopoulos, essa vitalidade que a Amizade sempre encerra resulta do encontro entre um velho e uma criança, cujos contornos - nomeadamente, geracionais - lhe imprimem uma certa dimensão transcendental, como se de um milagre se tratasse: a dado passo, temos, de certo modo, a sensação de que este velho e esta criança são o último velho e a última criança no mundo, derradeiros seres humanos caminhando de mão dada e amparando-se mutuamente. A metáfora não é disparatada, pois nem um nem outro, ainda que por circunstâncias distintas, têm alguém - ele, velho e solitário, preso à dor da perda da mulher e condoído pelo alheamento da filha, vive na sua melancolia solipsista; a criança, por sua vez, é um emigrante desterrado num país sobre o qual nada sabe, senão a rejeição e a marginalidade. Deste circunstancialismo "geográfico" associado à questão da emigração se podendo extrair, ainda, uma outra putativa Amizade, a saber, a que une (pode unir) diferentes povos e culturas, o que tem ressonâncias acrescidas atendendo ao concreto contexto cultural em causa (a questão dos Balcãs, figurada pela criança, de nacionalidade albanesa - tema, de resto, por demais explorado no cinema de Angelopoulos).
L'Appolonide: Memórias de um Bordel (2011, Bertrand Bonello)
A Amizade como resistência, como instrumento de cumplicidade e ajuntamento humano contra a crueldade, a desumanidade, a miserabilidade - a amizade apesar de tudo. Com a particularidade de esse ajuntamento ser formado por mulheres, prostitutas, cujos laços resistem a toda e qualquer intrusão, seja no espaço físico onde vivem (a sua "casa", que é, em verdade, um bordel, onde, portanto, a noção de privacidade sob quatro paredes é, irremediavelmente, uma miragem), na intimidade, enfim, no corpo. Melhor cena para descrever esta circunstância - da amizade como forma de resistência e coesão - não poderia existir do que o passeio no campo (uma "folga" ao trabalho, que é como quem diz, uma "folga" a essa intrusão quotidiana).
Os Juncos Silvestres (1994, André Techiné)
A Amizade como complexidade, resultante não só do momento específico por que estes jovens passam (a adolescência, período de transformações e convulsões físicas e psicológicas, individuais e grupais), bem como das complicadas fronteiras (?) com que ela se confronta: as do amor e da sexualidade (no caso, hetero e homo). Ainda, uma complexidade ditada por um outro momento específico na existência daqueles jovens, o tempo da guerra (a guerra dos franceses na Argélia, então sua colónia) e as contingências que ela encerra sobre o indivíduo: além das dissonantes posições propriamente ideológicas que sobre ela se possam ter - e que estes jovem efectivamente têm (e que podem, logo por aí, minar uma amizade) -, avulta, mais do que isso, a separação, física, que a guerra proporciona entre as pessoas, seja ela entre amigos, pais de amigos, amigos de amigos, etc.: uma relação de amizade não se ressente, também, de algum modo, quando o irmão de um amigo nosso parte para a guerra?
Um manifesto anti-belicista e, reflexamente, um elogio à Amizade enquanto arte do conhecimento do outro e das suas diferenças, enquanto arte, portanto, da tolerância (toda a guerra é produto da percepção das diferenças e da sua sublimação).
Jacques Tati
Na falta de um realizador que me parecesse óbvio na missão de sintetizar o tema da Amizade, decidi arriscar ao máximo e libertar-me de quaisquer critérios rigorosamente cinematográficos, tomando o caminho da pura cinefilia e das minhas vivências pessoais. Escolho, por isso, Jacques Tati, porque é, para mim, um amigo muito especial, não fosse ele o maior responsável pela relação - de amizade, também (mas não só...), que é disso que se trata - que tenho com o Cinema. Tinha 7, 8 anos quando, levado pela mão do meu pai, entrei, pela primeira vez, numa sala de cinema (o velhinho Nun'Álvares, no Porto), para ver Há Festa na Aldeia (1949). Em scope. O início de uma fascinação, de um encanto que, com o tempo, se transformou numa relação intensa, permanentemente dialéctica (aprender, reaprender), com essa coisa da "grande ilusão" (que, volvidos uns anos, tomando contacto com as novas vagas militantes, viria a sentir não ser tão "ilusão" assim - enfim, é a escola de André Bazin, cujos ensinamentos Godard cunhou naquele famoso statement do cinema como sendo a verdade 24 vezes por segundo, e todas as ideias que dela possam ser decantadas acerca do binómio cinema/realidade).
De resto, o cinema de Tati convoca algumas das características que mais podem ajudar a uma boa amizade: o desprendimento, a alegria, a ternura, enfim, o humor.
1 comentário:
Obrigado, mais uma vez, pela participação. Excelentes justificações, a propósito.
Cumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo
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