Há muitos apontamentos políticos – não chegaria a dizer um “subtexto” político – em Regresso ao Futuro (de que o mais flagrante será a genérica "inimização" da Líbia, enquanto abstracta entidade representativa do Mal - na altura, a Líbia, depois o Iraque, o Afeganistão, o Iraque novamente...), mas talvez os mais interessantes, como tantas vezes acontece, sejam os involuntários, como que deslizes ou um "tropeçar no próprio pé" de que não se deu conta e que revela mais do que aquilo que se quis.
1. No
filme, Michael J. Fox, pelo meio de várias desventuras, tem a oportunidade – genericamente
desaconselhada pelo cientista interpretado por Christopher Lloyd – de
"alterar" o passado para, reflexamente, alterar igualmente o futuro,
ou seja, o seu presente. J. Fox fá-lo-á, num primeiro momento, para evitar a
morte, no "futuro"/presente, de Lloyd, mas, num segundo, ver-se-á
forçado a mexer na h/História de forma a evitar que a sua mãe se apaixone por
ele próprio, garantindo, assim, que se apaixone antes pelo seu pai, para que
tudo siga o normal "rumo dos acontecimentos". O pai de J. Fox é um
adolescente introvertido, "nerd" e débil, gozado e escravizado pelo bully de toda
uma vida chamado Biff. O Biff do passado, que o obrigava a fazer por ele os
trabalhos de casa, é o Biff que, no presente, é o seu superior hierárquico na empresa, dele usando e abusando, e também com quem, muito provavelmente, a
sua mulher (mãe de J. Fox) o trai (há, aqui, um certo trauma da mãe “roubada”).
Através
de um conjunto de peripécias, na decisiva noite do baile, o seu pai, em vez de se acobardar no momento em que descobre Biff
a forçar Linda (a sua futura mulher) a uma coisa que ela não quer (mas que, ironicamente,
muito provavelmente não iria recusar com o seu… filho), inesperadamente
rebela-se e aplica um competente murro em Biff, para sempre lhe perdendo o
medo. Zás, emancipação definitiva, David derrotando Golias.
Com
esta freudiana missão cumprida, J. Fox volta ao futuro para o filme poder
terminar em beleza. Percebemos, então, como aquela imprevista reviravolta
surtiu não menos imprevistos efeitos: tanto a sua mãe como o seu pai estão, ao
contrário do que víramos no início do filme (feios, deprimidos, entediados com
o casamento, ela gorda e desgrenhada, ele o mesmo "nerd" da juventude),
ricos, apaixonados, cool e muito good looking. O pai, agora um escritor
renomado, mostra-se particularmente confiante e charmoso. É neste ambiente de
autêntico american
dream que
os pais dizem a J. Fox que poderá ir passar o fim-de-semana com a namorada no
seu novo carro (estranhíssimo o facto de agora o dizerem e mesmo incitarem com
um enorme à-vontade, por comparação com o início do filme, em que passar a
noite fora era, para aqueles mesmos pais, um tabu – o sucesso e a beleza fazem
as pessoas mais... liberais?!). O carro, explica o pai, está só a receber as
últimas afinações. E de quem? Nem mais nem menos do que Biff, o Biff outrora bully e
explorador que é, agora, o desgraçado, saloio e humilde mecânico do pai de J.
Fox, o qual zomba, com arrogância e soberba, do idiota que lhe
"arranja o carro para o filho" [o pai chega mesmo a comentar com o
filho qualquer coisa como "such a character ("personagem") this
Biff is..."].
Sim,
houve uma alteração no passado com a sublevação do pai frente a Biff - mas por
que razão, no futuro, Biff não poderia ter simplesmente desaparecido da vida
dos McFly e do próprio filme? Ou ser um tipo qualquer, que "nem aquece nem
arrefece" aquela família (ou até, para sermos ingénuos... um amigo da
família)? Porque, de facto, é muito americana - e não se veja aqui
demonização alguma - essa tendência para medir as interacções humanas por um rígido
tipo de padrão, a saber, a relação de forças que se estabelece entre
dominadores e dominados, controladores e controlados, entre "gozões"
e "gozados", winners e losers. Tudo numa perspectiva
vertical, de “altos e baixos”, fortes e fracos, perspectiva "posicional" de resto alimentada, à exaustão, pelo próprio cinema comercial americano – é assim na escola (Harvards e
Princetons para uns, tudo-o-resto para outros), na juventude (capitães da
equipa de futebol americano e “nerds” informáticos ou intelectuais), na
economia e no “empreendorismo” (os Zuckerbergs da Forbes e os "nobodies", os "zés-ninguém"), no “nós” (americanos) e os “outros” (os
estrangeiros).
2. E
por isso é que – agora talvez não tão inconscientemente assim – Biff estará
novamente no olho do furacão em Regresso ao Futuro 2, agora como
um velhinho azedo e desgraçado (por ter passado a vida como o bronco que
arranja carros à família de J. Fox, precisamente) que, tal como J. Fox no primeiro
volume, irá aproveitar a oportunidade de alterar o passado para
influir no futuro e fazer-se um homem rico e poderoso, deste modo voltando a
inverter, uma vez mais, a relação de forças e a impor a sua lei – a do mais
forte, claro, sempre. Assim, o Biff do "futuro" "roubará",
novamente, a mãe a J. Fox e, pior, "adoptá-lo-á" - consumação
definitiva da referida inversão e da "morte" do pai (também
literalmente, já que é assassinado a tiro, presumivelmente por Biff).
3. Num
outro plano, não deixa de ser curioso que, na
distopia que é a Hill Valey controlada por esse Biff do futuro, cidade escura
de crime e corrupção, J. Fox encontre, na casa que outrora fora a sua, na zona
que outrora fora a sua (então idílica mas agora degradada), uma família… negra.
Como se, no caos e na anarquia generalizada, os negros ocupassem os lugares dos
brancos, é dizer, como se uma distopia negra substituísse (e "estragasse") uma utopia… branca. Reaccionário será dizer pouco.
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