quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Artes Entre As Letras #13 - Crítica de cinema


No último número do Artes Entre As Letras, escrevo sobre Milagre no Rio Hudson do Clint Eastwood e o Cartas da Guerra do Ivo M. Ferreira. Bons filmes.

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Milagre no Rio Hudson (2016), Clint Eastwood ★★
A maior virtude do último filme de Eastwood acaba por ser, paradoxal e perversamente, o seu mais evidente defeito. Para alguém que, como nós, foi ver o filme sem fazer a mínima ideia do que ele tratava (muito menos dos factos verídicos em que se baseia), a virtude de que falámos assenta no facto de Eastwood (parecer) deixar a porta sempre aberta, no modo contido mas simultaneamente sugestivo como filma (aqueles planos gerais, silenciosos e misteriosos q.b.), para algo pelo qual nunca chega, afinal, a interessar-se (e é pena, tamanho é o desempenho que Hanks arranca): o lado interior de Sully, os fantasmas e angústias que se advinham e que uma ou outra pista indiciam (as dívidas, a distância da família, a solidão). Durante grande parte do filme, o nome de Andreas Lubitz, o piloto que se suicidou despenhando um avião em plenos Alpes franceses, ocorreu-nos inúmeras vezes à memória (insista-se: não fazíamos ideia do argumento), e a própria interrogação (silenciosa, novamente) de Sully ao longo do filme sobre o que é isso de ser um “herói” nos fez levar a crer que aquele acto (a aterragem de urgência no rio) bem poderia não ser o que pareceu. Mas não: Eastwood dispensa-se de qualquer gesto complexo (algo que, mesmo timidamente, ainda chegou a ensaiar em Sniper Americano, outro laudo ao espírito heróico americano), arreda-se de qualquer problematização “existencial”, preferindo ficar-se, muito pacificamente (banalmente), pela reconstituição fáctica do “dia D” (e só os mais aguerridos defensores de Eastwood conseguirão ver qualidades nas fastidiosas cenas da repetição do trajecto do avião), filmando mesmo já no fim, em registo quase de programa “da tarde”, um reencontro entre os “verdadeiros sobreviventes”. “Preguiça” é a melhor palavra que nos ocorre para descrever tudo isto.

Cartas da Guerra (2016), Ivo M. Ferreira ★★★
Não é novidade para ninguém que é ainda escassa a filmografia portuguesa (autoral ou não) produzida sobre o nosso passado colonial (os títulos mais importantes ainda continuarão a ser Um Adeus Português, Non, ou a Vã Glória de Mandar, Os Imortais ou A Costa dos Murmúrios), sem dúvida por opção dos realizadores e por constrangimentos de produção, mas também porque, como vem sendo sublinhado por muitos historiadores, o próprio país tem ainda dificuldade em olhar-se ao espelho e revisitar, sem complexos ou receios de represálias, esse período da nossa história colectiva. Entretanto, Miguel Gomes surgiu, fulgurante, brilhante, com Tabu (2012); mais recentemente, pelo contrário, em Posto-Avançado do Progresso (2016), Hugo Vieira da Silva, pese embora as boas intenções, não conseguiu convencer na adaptação da obra de Joseph Conrad ao contexto colonial português do século XIX, desde logo pelo desaproveitamento do material visual e fílmico à sua disposição, nunca tirando partido do capital natural (e cinematográfico, et pour cause) da selva africana. Ora, isso é algo que manifestamente não acontece no filme de Ivo M. Ferreira, visualmente quase irrepreensível, seja no apuramento altamente contrastante do preto-e-branco (admirável trabalho de fotografia de João Ribeiro), na iluminação ou naqueles poéticos planos gerais e de conjunto da paisagem angolana. Há momentos realmente brilhantes, como as cenas filmadas no navio saído para Angola (aquele God’s eye view shot sobre o médico a dormitar, os concertos para os recrutas), nas quais o realizador português denota uma noção muito precisa da (elegante) mise en scène que pretende. Sendo um filme “sobre” a guerra colonial, teria sempre que ser, necessariamente, um filme “político”, embora seja no cruzamento da “História” com a história individual e emocional de um médico (Lobo Antunes, então ainda não publicado) destacado para Angola que o filme – e a vida – se faz. A este respeito, um dos principais atributos do filme – a matéria textual das cartas de Lobo Antunes  – acaba por ser, paradoxalmente, um dos pontos fracos mais evidentes, não pelo seu conteúdo, naturalmente (embora as enumeração prolíficas, se bem que literariamente valiosas, sejam por vezes fastidiosas, algo que bem poderia ter sido adaptado para o filme), mas pelo recurso abusivo à leitura em off do texto em detrimento do foco na acção propriamente dita. Com a agravante de, por ricochete, a presença de Margarida Vila-Nova – que não a sua voz, magnífica na leitura, nada fácil, das cartas apaixonadas e angustiadas em doses iguais – se tornar decorativa e despicienda, culpa de quem a dirige e não da própria (nem mesmo como “fantasma”, como fantasia ou perturbação onírica funciona). É esse carácter exacerbadamente epistolar que, nos piores momentos (i.e., enquanto a leitura do texto dura e dura sem alternar com a acção em Angola), retira gravidade e esplendor ao filme, ao que não ajuda a câmara sempre em movimento, o que, por vezes, confere um certo tom ornamental e secundário à imagem por oposição ao omnipresente “som-texto”. Nada disto, porém, impede o filme de Ivo M. Ferreira de ser um digno e meritório objecto cinematográfico, orgulhosamente autoral, e um importante contributo para a preservação da nossa memória colectiva.

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