No Artes Entre As Letras que saiu ontem, escrevo sobre os novos filmes do Canijo, Jordan Peele, Malick e o novo Alien. Bons filmes.
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Fátima
(2017),
João Canijo ★★★
Num
percurso que vimos apreciando cada vez menos pela sofreguidão de Canijo em
bisbilhotar o “real” e dá-lo a ver com a pretensão de uma absoluta genuinidade
(“este é o Portugal profundo que não conhecem, vejam!, impressionem-se!”), eis um
filme que, se depende – como habitualmente – dos seus tornados chamados
actrizes (repetentes: Blanco, Moreira, Breia, Almeida), não menos vive da forma
como, contrariamente ao que acontecia num filme como Sangue do Meu Sangue,
se abstém – mesmo que inconscientemente – de carregar na tecla da boçalidade:
sim, o calão e os palavrões estão lá, mas são agora apenas um dos elementos de
composição das personagens, e já não o centro gravítico, o grande chamariz (“Eis
o Portugal feio, porco e mau!”) de todo o filme. Ao contrário de alguns filmes
mais recentes de Canijo, as personagens possuem espessura, têm um passado e um
futuro (têm, enfim, uma “história” dentro de si), e é na sua convivência
durante um momento particular que, pelo meio de várias peripécias (há algo de
felliniano naquela cacofonia de mudas de roupa, banhos, refeições) e muito
humor (elemento que escasseava nos registos realistas anteriores do cineasta),
vem ao de cima o olhar (e não tanto o trabalho de câmara, bem menos
habilidosamente ostensivo do que noutros filmes) de Canijo sobre os afectos, os
ressentimentos e os egos de 11 mulheres “à beira de um ataque de nervos” enfiadas
numa caravana – e, por essa tocante sensibilidade na imersão naquele mundo
particular, Fátima é, desde já, um
dos grandes road movies do cinema
português. Se Canijo se interessa pouco pelo fenómenos religioso em si (pelo
menos na versão mais curta do filme que tivemos oportunidade de visionar), não
deixa de ser curioso como as noções de “sacrifício”, “devoção”, “culpa”,
“arrependimento” ou “milagre” estão sempre latentes naquela dinâmica grupal
densa, conflituosa, por vezes mesmo violenta, como se a “peregrinação”, a
“viagem” destas mulher fosse até a uma qualquer “interioridade” dentro delas
mesmas. Injusto seria também não reconhecer a beleza daquela chegada a Fátima, comovente
momento – inclusivamente de um certo misticismo (ainda que involuntário) – em
que sentimos no corpo o cansaço, a dor, o alívio (a tal latência dos conceitos
religiosos…) ou uma simples brisa que atravessa as personagens nos instantes daquela
(im)possível reconciliação (a velha ideia de que um silêncio pode dizer muita
coisa). Momento, também, em que Canijo, mais do que se “silenciar” a si mesmo (i.é,
a câmara), “desliga”, sabiamente, a voz às personagens, deixando que a
coralidade religiosa as envolva, pontos minúsculos numa onda ou força maior que
elas, como no Viagem em Itália de Rossellini. Há milagre, não há milagre?...
Perguntem a Ingrid Bergman.
Foge (2017), Jordan Peele ★★★
Se
ainda há pouco tempo referíamos aqui como, actualmente, é no cinema de terror e
sci-fi que uma certa ideia de cinema
clássico (americano) é possível encontrar com mais nitidez, este aplaudido
filme em Sundance é mais uma prova a juntar à colecção, com o plus de Peele revelar uma particularmente
elegante noção de mise en scène, simultaneamente
arriscando alguns números interessantes (uma câmara à mão mais tremida aqui e
ali, alguns enquadramentos menos convencionais, por exemplo) mas sem nunca prejudicar
a coerência global da imagem. Filme “transgénero”, entre o thriller, o horror movie e a comédia, o cineasta
assegura-lhe solidez do princípio ao fim, sabendo balancear o suspense e o
mistério (a sensação de que algo de muito errado se passa naquela mansão quasi hitchockiana)
com as questões políticas (raciais) e inúmeros gags (a caricatura extremada imprime
um "humor terrorista” e, pontualmente, radical ao filme – exemplo: no
final das contas, não há um branco "bom"), nunca permitindo, contudo,
que a “mensagem” se transforme em bandeira e apague o interesse intrinsecamente
cinematográfico (e, até, meta-cinematográfico) do filme (a importância do
olhar, a fotografia como choque psicanalítico/revelação da verdade). E isso
muito por culpa do argumento, que, à melhor maneira do tal “classicismo” a que
aludimos, se mostra inteligente e subtil em doses iguais, cosendo-se e
descosendo-se permanentemente, os elementos narrativos e plásticos em reenvio constante
(o veado inicial como aviso e premonição; a mitologia do veado que depois nos
será apresentada; os cornos do veado com que o sogro é morto, assim se vingando
os “dominados”, os explorados; os negros como potenciais “beasts'”/animais pela
sua suposta “genética”…). Enfim, uma primeira (!) longa-metragem
auspiciosíssima para Peele.
Música
a Música (2017),
Terrence Malick ★★
Por
esta altura, os problemas no cinema de Malick são de duas ordens de razão: a
abordagem estética, por um lado, e o facto de os seus últimos três filmes mimetizarem,
a um ponto extremo (quando não constrangedor), essa mesma abordagem. Com
efeito, desde A Árvore da Vida que se
firmaram os processos e tiques do actual "estilo Malick", os mesmos
presentes em A Essência do Amor e Cavaleiro de Copas e que aqui se descortinam
logo na primeiríssima cena do filme: uma porta entreaberta e um actor de cada
lado olhando-se no escuro, a câmara serpenteando de baixo para cima (quase nunca
de cima para baixo). Está dado o mote para tudo o que adiante se repisará e que
aqui apenas exemplificativamente se enuncia: as discussões filmadas invariavelmente
à janela, como se não houvesse outro lugar para as ter (curiosamente, sempre
janelas amplíssimas em apartamentos de moderníssima arquitectura); planos
aproximados de dois corpos em coreografia do tipo “amor-devoção” (um de pé e o outro,
de joelhos, abraçando-o); mãos filmadas a roçar cortinados e outras texturas
que tais; pés molhados numa qualquer superfície aquosa; a câmara esvoaçante
sempre a tirar partido da contraluz; ou, enfim, as vozes em off, substitutas praticamente em
absoluto de qualquer réstia de diálogo – embora este até seja um dos aspectos
que permanecem interessantes no cinema de Malick, i.é, a forma como cria um
diálogo emocional “subterrâneo” entre as personagens, colocando os pensamentos
interiores de cada uma em confronto (ora num sistema de "pergunta e
resposta", ora em diálogo puro), um pouco como acontece na vida, em que
tantas vezes desconhecemos como, a um nível insondável, aquilo que nos vai na
cabeça bem pode estar em "comunicação" com os pensamentos dos outros,
todo um mundo "secreto", por isso que poético, a envolver-nos. Isto é
o que de genuinamente belo e inventivo vai sobrando dos filmes de Malick, que à
replicação de processos soma um argumento paupérrimo (amores e desamores de
quatro personagens que habitam vagamente o “mundo da música”) no qual às
personagens pouca ou nenhuma profundidade é dada, a ambição filosófica de
Malick a redundar, contra a sua vontade, em figuras de papelão. As aparições de
Patti Smith e Iggy Pop são confrangedoras (estão lá para quê, exactamente?)
pela superficialidade do que se lhes ouve (sobretudo Smith), o que,
perversamente, as desvirtua e as faz parecer gurus de auto-ajuda encardidos. Embora
de “milagres” esteja o cinema de Malick cheio, a esta altura do campeonato, talvez
já não seja de esperar, para nosso desgosto, nenhum volte-face no cinema de
Malick (saúde-se, por outro lado, a liberdade e independência do americano para
poder fazer os filmes que quer e como quer).
Alien:
Convenant (2017),
Ridley Scott ★
É
caso para dizer que, à terceira, não é
de vez: Ridley Scott volta a não conseguir empolgar como em 1979, data do
original Alien, desde logo porque o
medo, matéria por excelência no primeiro filme da saga (o segundo é Prometheus, 2012), é coisa que
praticamente não existe neste filme, que se vulgariza como “filme de acção” sem
brilho igual a tantos outros produtos audiovisuais que circulam pelas salas sem
glória. Nem é apenas aquela coisa do “mostrar demais” (a máxima “less is more” como fórmula para a criação
de atmosferas desconfortáveis para o espectador); nem demais, nem de menos, simplesmente
não se vislumbrando nervo ou génio para manipular o espectador e colocá-lo em
sentido. De resto, não deixa de ser constrangedor reparar como filmes recentes
se revelam ora “mais Alien” do que esta sequela realizada pelo seu criador original,
caso de “Vida Inteligente” de Daniel Espinosa; ora desenvolvem determinadas
ideias de forma bem mais estimulante do que Scott aqui faz, como acontecia em “Passageiros”
(2016, Morten Tyldum), onde o sono criogénico dos colonos a bordo de uma missão
espacial também era interrompido a meio do caminho de forma imprevista. Com a
excepção de duas ou três sequências de relevo (a do chuveiro, por exemplo), o
filme, na sua indecisão em explorar a questão metafísica (os homens e as
máquinas, o livre arbítrio e a submissão, a origem da criação) e a matança do bicho
(e quanto capital visual aqui se desperdiça…!), estatela-se ao redondo,
rapidamente se esfumando da memória do espectador assim que este abandona a
sala.
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