chorou como um menino quando a avó ficou no hospital. "nem duas palavras lhe conseguia perceber ao telefone", diz com falsa altivez, como se ambos desconhecêssemos que a mão que não larga a minha treme da comoção. mais tarde, repararei na mão dele, do avô, uma imensa mancha violácea que peço para fotografar. dias depois, estarão finalmente juntos nesta casa e, então, como se tudo voltasse ao tempo em que o avô saía de manhã para trabalhar e regressava à hora do almoço preparado pela maria das dores (teve que ir embora, parece que uns fios sumiram, fico agora a saber), vemos, no sofá torrado de nascença e pelo sol dos anos (abre os estores, a avó quer luz), as cobras na televisão. a voz do locutor ainda é a mesma, quem sabe não se tratará de uma reposição, aí é que seria a volta completa. é desde esse tempo que lhes guardo pavor e fascínio extremos, os mesmos que me revolveram a cabeça de menino quando, sozinho em casa, vi um programa em que um rapazito como eu, australiano talvez, encontra uma enorme e esfíngica aba de dois minúsculos olhos à saída da sanita quando se prepara para o xixi-cama. anos, muitos, que passarei atemorizado pelo bicho que subirá secretamente pelos canos. é pela mesma altura que verei da janela do carro a pele seca de uma delas pendurada num poste no meio da neve a caminho da serra da estrela como aviso para não sei, afinal, exactamente o quê. ou julgo que vi. a avó, de olho guloso (como se também colocasse a língua de fora), fixa o ecrã e depois, subitamente, passa a mão por debaixo das minhas pernicas
olha
olha aqui uma
bichebichebiche
também está aqui uma
como faz com os gatos lá fora, junto ao tanque, cobras e gatos, galinhas, lesmas, para ela tudo seres pertencentes à mesmíssima ordem, como um prolongamento dos seus dedos, unhas, da sua pele, saliva. uma tarde haverá - algo que me estava perfeitamente predestinado, cosmicamente marcado - em que uma dessas cobras salta do televisor para a bouça. nem a verei com olhos de ver, corro para dentro, grito, o Jorge descerá negligentemente do seu clandestino sótão onde ainda hoje encontro tesouros (discos, mapas, porta-chaves…) no seu habitual espírito gozão e, de uma machadada só, zás, não mais a vi. deixa aí nas cobras que eu gosto, pede agora. e eu, fora do seu ângulo de visão, levanto-me e dou dois passos só para ver outra vez aqueles dois berlindes rutilantes. o olhar só se desviará no momento de se ir aliviar, dou-lhe o meu braço e andamos lenta, mesmo muito lentamente, até ao momento em que terá de optar por baixar as calças à minha frente ou fechar a porta, as duas ao mesmo tempo não consegue. eu fecho a porta, chame-me quando terminar, sim? cha me me quando ter mi nar, sim? e sento-me novamente, uma cadeira bem rectangular para me amparar das circunvalações.
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