“Em
Fanon, o termo «Negro» advém mais de um mecanismo de atribuição do que se
autodesignação. Eu não sou negro, declara Fanon, nem sou um negro. Negro não é
o meu nome nem apelido, e menos ainda a minha essência e identidade. Sou um ser
humano, e isso basta. O Outro pode disputar em mim esta qualidade, mas nunca
conseguirá tirar a minha pele ontológica. O facto de ser escravo, de ser
colonizado, de ser alvo de discriminações ou de toda a espécie de praxes,
vexações, privações e humilhações, em virtude da cor da pele, não muda
absolutamente nada. Continuo a ser uma pessoa intrinsecamente humana, por mais
violentas que sejam as tentativas que pretendem fazer-me crer do contrário. Este
excedente ineliminável, que escapa a qualquer captura e fixação num estatuto
social e jurídico e que nem a própria condenação à morte conseguiria
interromper (…), nenhuma doutrina e nenhum dogma poderão apagá-lo. «Negro» é
portanto uma alcunha, a túnica com a qual outros me disfarçaram e na qual me
tentam encerrar. (…)
De
facto, o substantivo «Negro» tem vindo a preencher três funções essenciais na
modernidade – funções de atribuição, de interiorização e de subversão. Em
primeiro lugar, serviu para designar não seres humanos como todos os outros,
mas uma humanidade (e ainda) à parte, de um género particular; pessoas que,
pela sua aparência física, os seus usos e costumes e maneiras de ser no mundo,
pareciam ser o testemunho da diferença na sua crua manifestação – somática,
afectiva, estética e imaginária. (…)
Ao
longo da história, aconteceu que aqueles que foram ridiculamente contemplados
com esta alcunha (…) acabaram por habitá-la. Passou a ser de uso corrente, mas
isto fê-lo mais autêntico? Num gesto consciente de subversão, poético umas
vezes, outras, carnavalesco, muitos a terão endossado somente para melhorem
devolverem contra os seus inventores este patronímico humilhante. Decidiram
transformar este símbolo de abjecção num símbolo de beleza e de orgulho,
utilizado doravante como insígnia de um desafio radical e de um apelo ao
levantamento, à deserção e à insurreição. Enquanto categoria história, o Negro
não existe, portanto, fora destes três momentos: o momento da atribuição, o
momento de aceitação e de interiorização e o momento da reviravolta ou da
subversão (…).
(…) Situados à força num mundo à parte, reservando as suas qualidades de seres humanos para lá da submissão, aqueles que tinham sido adornados com o nome de «negro» produziram historicamente pensamentos muito seus e línguas específicas. Inventaram as suas próprias literaturas, músicas, maneiras de celebrar o culto divino. Foram obrigados a fundar as suas próprias instituições - escolas, jornais, organizações políticas, uma esfera pública que nada tem a ver com a esfera pública oficial. Em larga medida, o termo «Negro» assinala este estado de diminuição e de enclausuramento. É uma espécie de balão de oxigénio num contexto de opressão racial e, por vezes, de desumanização objectiva".
Crítica
da razão negra, Achille Mbembe (trad. Marta Lança)
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