Era um homem simples mas curioso. Farto da rotina e dos dias sempre iguais, definiu para si um objectivo: teria que descobrir, diariamente, um pormenor novo no trajecto de casa para o escritório que percorria todos os dias da semana sem excepção. No primeiro dia, reparou que, nas costas do prédio dos escritórios onde trabalhava, se podia avistar, da mesa do café onde intervalava o trabalho com revistas do que calhava, uma enorme cruz de cristo da igreja mais próxima. No segundo dia, deu conta que uma rapariguita que, de fugida, havia passado por si nessa manhã era, afinal, a mesma por quem passava todos os dias quando saía de casa pela manhã e voltava para o almoço. Ao terceiro dia, apesar do esforço tenaz na descoberta de algo inusitado ou fora do sítio, o seu olhar não foi capaz de se fixar em nada que fosse realmente novo. Tinha sido um dia difícil e, ao contrário dos anteriores, em que a missão havia sido cumprida ora logo de manhã, ora à hora do almoço, desta feita, nem no percurso de regresso a casa ao final do dia a novidade irrompeu. Quando estava a chegar a casa, insatisfeito, sentiu um tremelique na mão direita. Largou a pasta, que se aninhou num recanto de erva daninha e papel de chupa-chupa. Fez o trajecto inverso e voltou ao escritório. No momento em que se preparava para se despedir perante o seu superior, reparou que este estava com o rosto mais reservado, menos inflexível, do que o habitual. Quando se preparava para dizer claramente ao que vinha (ou ao que partia), viu-lhe escorrer uma lágrima gorda do olho. Inexplicavelmente, escorreu como as lágrimas pretas borratadas da maquilhagem que os palhaços pintam pelo meio do rosto, e não pelo canto dos olhos. Tudo aquilo era uma novidade, e bem que poderia contar para a sua contabilidade diária. Mas já era tarde. Despediu-se. Ao chegar à rua, sentiu como era triste arranjar motivos de distracção inovadores para cada dia. Pôs-se a caminho, confuso.
Sem comentários:
Enviar um comentário