"(...) o primeiro lugar de Agustina que eu conheci foi a casa em que ela e Alberto Luís se fixaram desde a década de 70, situada na Rua do Gólgota, num dos montes do Porto, mesmo junto aos caminhos do romântico, entre quintas sossegadas que foram de ingleses, por cujas áleas perfumadas meninas pensativas arrastaram as caudas dos vestidos. (...) Numa manhã de aguaceiros, apanho o metro e chego à Póvoa de Varzim. Agustina viveu aqui dos seis aos 12 anos, quando o pai geriu o ne...gócio do jogo, primeiro no Café Chinês, depois no casino novo. (...) Imagino a pequena Agustina, acompanhada pela prima Laura, calcorreando as ruas da vila, entrando nas modistas a pedir retalhos para vestir as bonecas, frequentando as mercearias que vendiam rebuçados irisados em cartuchos pardos, indo à Travessa dos Casinos pedir hóstias ao fabricante, entrando no Cinema Garret para se rir das narrativas dos amores infelizes. Mas sei que continua a ser uma menina algo isolada, que lê muito e inventa histórias que partilha com as colegas durante as aulas de lavores. Não faltariam motivos para a efabulação entre os episódios da Bíblia, de que conhecia passagens de cor, as tiradas sentimentais das fitas a que assistia no cinema, as muitas leituras, mais ousadas do que as que seriam de supor numa menina da sua condição. Mas eu gosto de pensar que Agustina se inspirava também noutras coisas. (...) Se, em qualquer indivíduo, a etapa da adolescência é sempre propícia à introspecção, num adolescente que lê, os livros alimentam esse estado propício ao mergulho profundo no interior do ser. Em tempo de exílio e prostração ('não direi depressão, porque não chegou a tanto'), parece inevitável que Agustina começasse a escrever. Descobrindo nas páginas extraordinárias escritas por outros 'um milagre, uma criação do mundo', aos 15 anos sente o mesmo impulso, mas, em vez de enveredar pela escrita em verso, prática mais usual entre as meninas com aspirações ao cultivo das letras, escreve um romance. (...) Como já se ouviu muitas vezes, nenhum biógrafo consegue pesquisar diariamente o seu biografado sem ser tocado por essa experiência. Contagiada pelo espírito do lugar (...), acerco-me da poltrona das ramagens, sento-me nela, deixo-me fotografar. Um gesto infantil, tão tonto que não deve ser levado à conta de arrogância (...). Sim, Agustina sentava-se aqui. Dir-se-ia que, quando me falta a imagem, a confissão, a evidência, também eu invento a verdade. (...) 'A possibilidade duma realidade é infinita'. E a verdade de uma vida é múltipla e contraditória".
("Lugares de Agustina", imperdível texto de Isabel Rio Novo na LER, Primavera 2018, n. 149)
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