Não tenho escrito sobre cinema com a regularidade de que gostaria, mas, à boleia da réentrée do À pala de Walsh, volto a pegar na caneta olhando para "ANA, MON AMOUR", um xanax romântico nos Comprimidos Cinéfilos deste mês, e que, infelizmente, demasiado despercebido passou pelas salas portugueses (a que junto, mais abaixo, o Palatorium de Setembro).
Os restantes comprimidos aqui: http://www.apaladewalsh.com/2018/09/comprimidos-cinefilos-julho-e-agosto/
Nunca o nome desta rubrica se adequou com tanta propriedade a um filme como este ao qual agora nos lançamos. Comprimidos, sim: ansiolíticos, tranquilizantes, anti-depressivos, por aí fora. Tudo isto está no campo e no fora-de-campo de Ana, mon amour (Ana, Meu Amor, 2017), a segunda longa do romeno Cãlin Peter Netzer, vencedor do Urso de Ouro na Berlinale 2013 com Pozitia copilului (Mãe e Filho, 2013). Um cerimonial preparatório antes de sair de casa; a desmedida importância que se dá a uma palavra ou a um gesto (tantas vezes lido, porventura erradamente, como insinuação de); a imagem de um rosto ou de um momento que não nos larga o pensamento; enfim, as famigeradas “borboletas no estômago” quando avistamos alguém ao longe… Tudo isto tem um e muitos nomes, e tantas vezes dois deles se confundem num só: amor, ansiedade; ansiedade, amor. Uma das primeiras virtudes do filme de Netzer reside precisamente aí: no modo como, para além da dimensão “clínica”, não deixa nunca que o espectador se esqueça de que o amor (também) é, por natureza… ansiedade; e de que, em toda a ansiedade (mesmo que não a amorosa ou romântica), existe alguma espécie de… “amor”, no sentido de que ela sempre carrega uma qualquer vertigem, fúria, frémito.
Uma outra virtude de Netzer está no modo (no ritmo) como monta as “cenas da vida conjugal” de Ana e Toma, ora de modo rápido e cortante, correspondente à “instantaneidade”, imprevisibilidade, dos ataques de pânico de Ana (extraordinário trabalho de representação de Diana Cavallioti); ora filmando-os em cenas longas, demoradas, a câmara à mão relativamente à deriva. Neste último caso, se tal opção, numa leitura mais imediata, “internaliza” os efeitos anestesiantes dos comprimidos de Ana (como se a câmara estivesse “drogada”), também serve um outro resultado, porventura mais belo, que é o de captar o amor nos seus momentos mais cândidos, ingénuos, enfim, felizes: é tudo isso que está nesta nouvellevagueana sequência que vai sendo “decoupada” ao longo dos 125 minutos (espantosa aquela situação, logo na primeira cena, em que Cavallioti passa, muito lenta e genuinamente, de um ataque de pânico para o início daquilo que parece ser um momento de prazer sexual…). 53 anos depois, Ana é o update geracional, cultural, “patológico”, da Giuliana (Monica Vitti) de Il Deserto Rosso (O Deserto Vermelho, 1964): os “ataques” deixam de ser meras (e, de certo modo, estilizadas) petrificações existenciais (o ennui antonioniano) para serem o que, na verdade, sempre foram: problemas médicos reais, carentes de acompanhamento clínico – a ansiedade como “a” doença mental do século XXI, com uma galopante penetração entre os jovens ditos millennials (e é por aqui, aliás, que reside um dos aspectos menos felizes do filme: a psicanálise utilizada como modo forçado para explicar, com um superficialíssimo simbolismo, tudo e mais alguma coisa).
Fassbinder ficou para a história do cinema, entre outras coisas, pelo modo visceral, violento, incómodo mesmo, como procurou demonstrar que as relações amorosas são, no princípio e no fim, relações de poder, perfeitamente delineadas no que ao binómio explorador-explorado diz respeito. Dir-se-ia, então, que, em Ana, mon amour, os termos são um pouco diferentes – mas talvez nem tanto assim, afinal. O desmedido altruísmo manifestado por Toma para com Ana é, na verdade – compreenderemos na última meia-hora do filme –, a sua forma – quiçá inconsciente, sim, mas o Poder nunca viveu, por natureza, da “boa consciência” – de exercer poder e dominação. Se Ana, durante grande parte dos anos que atravessam aquela relação, depende, inteiramente, de Toma (quão poderosa a cena do suicídio-que-não-é-mas-é-suicídio), o contrário não é mentira. Queremos dizer: Toma é absolutamente dependente da dependência de Ana por si, e, uma vez atenuada a dependência desta última, o chão começar-lhe-á a fugir (a Toma). Quem é dependente de quem, afinal? A aparente solidariedade, disponibilidade total de Toma constitui-se, hélas, numa perversa forma de poder, controlo, enfim, da sua própria sobrevivência. Era precisamente disto – embora com um aporte mais politizado (classista, marxista) – de que falava Fassbinder.
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