terça-feira, 15 de novembro de 2011

ainda "Interiors"




O facto de o filme Interiors (1978), de Woody Allen, se chamar "interiors" (ou "Intimidades", numa tradução que, embora fiel, acaba necessariamente por perder o sentido original) tem, a meu ver, um significado muito especial.

Eve (um trabalho de degradação da personalidade magnífico, por Geraldine Page), a mãe das três irmãs, e à volta da qual gira todo o filme e as relações entre as personagens, foi, durante a sua vida activa, designer de interiores até ao momento em que, por causas nunca realmente explicadas - e isto não é inocente, pois quer sugerir, de forma natural, que há momentos indefiníveis e imprevisíveis nas nossas vidas com os quais temos de lidar, naquela que é uma reflexão existencialista por excelência - se começa a afundar num estado de prostração profundo (numa cena do filme, uma das suas filhas, Renata, interpretada por D. Keaton, irá dizer que receia estar a entrar na idade em que a mãe começou, por assim dizer, a descambar). Situação que será agravada, mais tarde, com a decisão do seu marido em deixá-la e iniciar uma nova vida (numa redescoberta "teenager" dos prazeres mundanos). Dizia que Eve havia sido designer de interiores; no presente, ela continua com essa ocupação, mas de modo informal, cuidando da decoração da casa de uma das filhas (Joey), recém-casada. Fá-lo, no entanto, de uma forma perfeitamente obsessiva, minuciosa e exasperante, irritando de sobremaneira o casal (sobretudo o genro).
Por outro lado, Eve tem a mesma obstinada preocupação na decoração da sua própria casa, onde, hoje, vive sozinha. Há, aliás, um plano fabuloso em que ela é filmada no seu quarto mudando uma peça da mobília sucessivamente de sítio, acabando depois por fitar interminavelmente, imóvel e vazia, o quarto.

É como se existissem dois "interiors" (leia-se em português ou em inglês, tanto dá): o interior de Eve propriamente dito, sua alma e pensamentos; e o interior das casas que ela decora, que é, na verdade, paradoxal e simultaneamente, o exterior, aquilo que os seus olhos vêem, aquilo que está fora de si.
A obsessão perfeccionista de combinar e organizar tudo detalhadamente - riscas com riscas, xadrez com xadrez, claros e escuros, creme e salmão, etc. - i.e., a necessidade de ordenar estes interiors materiais, ou físicos, digamos, funciona como um escape de Eve para o facto de não conseguir colocar em ordem o seu próprio interior, profundamente destroçado e instável. É, no fundo, uma vontade de ajustar esteticamente, artificialmente, aquilo que não o é, o que não está à superfície, o que não é visível aos olhos. É a procura do belo (da harmonia, da coerência) no que está para além de nós, quando a fealdade do mundo se nos impõe duramente no mais íntimo do nosso espírito. É essa a demanda - pela "paz interior" - impossível, suicida, de Eve.


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