Ainda no À Pala de Walsh, passei também a escrever na rubrica Sopa de Planos (a origem da rubrica aqui), uma das mais estimulantes e que, pessoalmente, mais gozo me dá de exercitar. Para este mês, o plano-tema agregador escolhido foi o da chuva e o meu contributo partiu de um clássico, Casablanca (1942, Michael Curtiz), ideia que já havia sondado - muito apaixonadamente - neste blog e que agora tive oportunidade de desenvolver (não menos apaixonadamente). Podem, então, ler a "Bátega de cinema" ali ao lado (clicar).
Uma vez que tive de fazer ligeiros cortes ao texto original, deixo aqui a versão completa.
Costuma
dizer-se, mais optimista do que realisticamente, que a água lava tudo (ou que, e adulterando um título cinematográfico
não menos clássico que Casablanca, “tudo
a água leva”). Há quem, inclusive, aprecie o Inverno por ser a estação do ano
que, graças às suas crónicas chuvas, permite “lavar” as tristezas e as mágoas
vividas nos restantes dias do ano. O que não deixa de ser irónico quando tão
frequentemente associamos a chuva à tristeza e à melancolia (rainy days…) – como pode uma tristeza
lavar outra tristeza?
Em
Casablanca, porém, o adágio de que a água lava tudo não podia ter
contrapeso maior: na verdade, para o amor de Rick e Ilsa, ou, sendo mais
exacto, para Rick, a água não lava coisa nenhuma. Numa noite em que chove
copiosamente – melhor: em que o céu “chora”, como que antecipando o que se
passará a seguir –, Rick aguarda ansiosamente, como combinado, por Ilsa na
estação donde deverão apanhar o comboio que os levará para Marselha, evitando,
assim, a iminente chegada dos nazis. A chuva, intensa e ruidosa, só acentua a
sensação de incómodo e urgência em abandonar Paris (mesmo para aqueles que will always have it…).
Ilsa,
porém, nunca aparecerá. O único – e, então aparentemente, último – sinal que
Rick terá seu é o bilhete que lhe deixou no hotel, e que lhe é trazido por Sam.
Encharcado, e esquecendo-se, por momentos, da chuva, Rick lerá, com um soco do
tamanho do mundo no estômago, esse bilhete, momento em que Michael Curtiz já
nos comoveu com um plano subjectivo sobre as palavras escritas por Ilsa. A água não lava nada: não lava aquele que
é, sabemos nós e sabe-o Rick, um amor para a vida/um amor de uma vida, ao qual
Rick continuará irremediavelmente preso. A
água não lava nada: a água borrata, sim, a tinta das palavras, fazendo com
que esta se espalhe como uma mancha (de amor, de sangue) que aumenta, alastra,
ameaçadoramente, no que plasticamente sugere o paradoxo que é o do amor ganhar ainda
mais força (ao menos num sentido trágico) nos momentos de ruptura abrupta em
que uma das partes fica “sem pé”. Simultaneamente, porém, personificado nessa
tinta sangrenta, o amor escorre do papel, esvai-se, foge-lhe (a Rick) por entre
os dedos. É esta a duplicidade confusa, pungente, que a chuva gera: por um
lado, nada lavando, indicia o amour fou a que Rick ficará agarrado
para a vida, mas, por outro, é ela que faz desaparecer o último sinal de vida
de Ilsa, desbotando as suas palavras para um qualquer ralo de esgoto. A chuva dá e tira.
Chove
por todo o lado – e todos chovem/choram: o céu, a carta, Rick (quem se
atreve a distinguir no seu rosto o que é água da chuva e o que são lágrimas?)
e, advinhamos, Ilsa.
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