quinta-feira, 28 de junho de 2018

corpo-a-corpo

A luta corpo-a-corpo habitual, hoje fica dez euros, não fica nada menino, fica sim ande lá, não menino são cinco, estou a pedir-lhe fica assim senhor ferreira por favor. No Natal, era mais fácil convencê-lo, a desculpa saía mais lesta, o frio que entrava pela porta quando algum cliente saía obrigava-o a tomar decisões rápidas, discutir menos. Isto quando eu tinha dinheiro na carteira; se não era o caso e lhe dizia a ele ou ao irmão vou só levantar ali e já venho, a resposta também já era conhecida não vai nada paga da próxima, ó senhor ferreira não me venha com essa a próxima não sei quando vai ser sei lá quando volto a cortar o cabelo. Mas volta, não volta?

Pelo menos nesta luta do multibanco, eu saía sempre vencedor, ia num pé e vinha noutro das galerias lumiére, aquela frase dos irmãos do cinema que o godard citou no le mépris, alguém a pintou do lado de lá, numa noite estranha tirei uma fotografia à rita com ela nas costas, gosto tanto dessa fotografia… nota vermelha nas mãos para então sim, de regresso à amistosa arena, iniciar o segundo round, o tal dos dez euros não menino fica cinco

Volto sim senhor senhor ferreira. Volto desde os meus dezoito anos, primeiro de faculdade, um dia qualquer em que saio pela zona mais elevada de direito, junto a jornalismo, desço pela rua das oliveiras, passo pelo bar do meu tio eurico (o meu tio eurico já morreu, agora está lá o meu primo, também eurico, por sinal, mas eu continuo a ver lá o meu tio, embora ele estivesse por lá num tempo em que eu evitava encontrar os meus tios, que é feito do teu pai pá nunca mais falámos sabes como são estas coisas ai a vida xico, copos e uma hereditária melancolia com que não sei, não queria, talvez ainda não saiba lidar), dou-lhe um abraço, criatura que sempre contemplo com fascinação na sua energia instável, insatisfeita, desesperada (escrevi um filme baseado numa personagem que é, sem tirar nem por, ele mesmo, quando houver dinheiro, verá a luz do dia, provavelmente nunca), mas dizia, não foi a necessidade que, originalmente, me fez lá ir cortar o cabelo; o que me fez reparar naquelas porticas pintadas a vermelho em tal dia foi o autocolante, fundo branco, coração vermelho, letras pretas

I (coração) MOÇAMBIQUE
(mais tarde, hei-de explicar, orgulhosamente, a sua história a duas raparigas por quem me apaixono)

O resto, como se costuma dizer, é cabelo. E rádio festival, fadunchos, discos pedidos e as remotas e desesperadas vozes que os dedicam ao locutor que tanta companhia lhes faz (outro filme que tenho na cabeça é sobre esse submundo e foi rabiscado no telemóvel enquanto senhor ferreira, o de lá, me tesourava, ou melhor, enquanto fazia uma pausa contrariada e me olhava de soslaio, já está menino, sim desculpe lá senhor ferreira), os rostos do costume e o monumental bigode que senhor ferreira, o de lá, já não usa na fotografia, o irmão mais novo reformado que passa lá o dia a varrer o chão e a ouvir a converseta dos clientes (só muito mais tarde vim a perceber que era irmão, na verdade), a superior mas comedida inteligência dos dois irmãos mais velhos sempre que alguém puxa de um assunto qualquer: Pois, talvez, não sei, é capaz de ter razão. No aborto, na bola, no casamento gay, na igreja, a resposta vinha sempre parcimoniosa, entrecortada apenas pelo zás, zás, zás, zás. Lavar o cabelo só com sabão menino, de certeza, sim e só de vez em quando. O meu pai, o henrique, o meu irmão lucas, o álvaro, o gui, o tavares, todos eles passaram depois a ser testemunhas da mesma humildade. Dessa crença na disciplina e no trabalho (da qual estou, “ideologicamente”, se é que o posso dizer assim, distante, mas que não me deixa de me comover): ó menino, férias para quê tenho o domingo para passear, despachou-me num dia de setembro em que lhe perguntei pelo “verão”. Qual verão qual quê, ali o relógio só marcava

marca
as sete, as da manhã, hora em que as porticas vermelhas se abriam, e as da noite, em que fecham. Feriados também se trabalhava

trabalha
pois claro. Mas porquê senhor ferreira, então menino imagine que um dia um cliente nos aparece aqui e estamos fechados. Mas é feriado senhor ferreira e, sem concordar, concordava olhando-o no espelho que me devolve a assertividade deste homem bom, sempre com o belo relógio no pulso, um olho no cabelo e outro nas fotografias, o meu neto ali joga no porto, não vou vê-lo porque não gosto da bola no estádio, daquela gente toda, mas sei tudo e leio sobre ele no jornais, grande jogo que fez contra o benfica no ano passado, não leu nos jornais menino, o pai dele sim também é barbeiro mas na senhora da hora nunca quis vir para aqui e eu compreendo menino. E aquela menina ali com a pintinha na cabeça, é minha neta a minha filha casou com um rapaz indiano

Senhor ferreira, o de lá, sempre me lembrou, muito nitidamente, o meu avô. Não apenas pela calvície, os óculos ou os grandes sinais nos braços brancos e magros, a forma da cabeça, o tronco, mas também por esse sentido de disciplina, labor, esforço, de honra, também. Certamente de outros tempos, certamente dos quais estou, “ideologicamente”, se é que o posso dizer assim, distante, mas que não me deixa de me comover. Outros tempos como os de moçambique não é senhor ferreira como foram esses tempos hã, ó menino foi muito bom, aquilo era tão bom, como foi lá parar senhor ferreira, fui eu primeiro depois foi lá ter o meu irmão tínhamos uma barbearia, como esta, sim um pouco maior e eu olho pelo espelho para senhor ferreira, o de cá mas que neste momento pela minha posição é o de lá, imagino-o em mangas de camisa suadíssimo numa terra castanha que não conheço, no vinte e cinco de abril a minha mulher e os meus filhos voltaram primeiro, quando eu voltei ela morre-me fiquei com cinco para criar sozinho, como fez senhor ferreira, como fiz então menino cortei cabelo, pois. … E nunca mais casou senhor ferreira desculpe a pergunta, ah sim casei e vivo junto há trinta anos, ah que bom assim! Mas então como era lá a vida, era muito boa menino agora aquilo está muito pior desde que nós saímos de lá, senhor ferreira mas aquela terra não era nossa só tínhamos que sair, ó menino não é assim, calo-me senhor senhor ferreira vou calar-me sem lhe dizer que me vou calar eu não vivi lá jamais concordarei consigo mas não é aos seus oitenta e não sei quantos anos que um rapaz de trinta lhe vai explicar como ele acha que é e como não é só se eu fosse parvo. Já voltou lá? Nunca mas houve uma ocasião há uns anos numa viagem que a associação organizou mas acabei por não ir achei caro e era pouco tempo menino e sempre de um lado para o outro, então não vai voltar nunca mais, não sei menino talvez não mas gostava muito

Tentei explicar isto ao mário, mário quero falar-te de senhor ferreira, quero dizer são dois, dois irmãos, corto lá o cabelo há muitos anos, quero fazer um documentário com eles mas não sei se aceitarão. Reunimos em minha casa num verão em que ele estava cá por uns dias regressado da croácia, enviei-lhe um word com um guião umas fotografias também, ele interessou-se, sim, vamos fazer o filme tens mesmo que falar com eles. Meses e dias que andei a adiar, até telefonei, tou senhor ferreira então como está queria falar-lhe de um assunto posso passar aí amanhã, sim claro menino quando quiser. Meses e dias a pensar que vai ser impossível convence-los a sentarem-se em frente a uma câmara até que senhor ferreira, eu gostava de fazer um filme com vós os dois, ó menino mas é da televisão o menino, sou do direito não é estudei aqui ao lado como senhor ferreira sabe mas também faço umas coisas ligadas ao cinema, ah sim menino pronto é quando quiser vem aí e combina-se isso estamos habituados volta e meia vem aí a televisão, só temos que ver a hora porque eu às seis e pouco tenho que estar a sair menino, diz senhor ferreira, o de cá, tenho a minha mulher acamada em casa e o saco pode rebentar tenho que ir a correr apanhar a camioneta. Está tão doente já viu o que isto é chegar a esta idade e viver com esta preocupação é muito mau menino não encontro ninguém que queira ficar com uma senhora idosa até tão tarde. Mudo de assunto, senhor ferreira, quero tentar animá-lo e por isso pergunto-lhe pela sua rotina deita-se tarde senhor ferreira, nã menino, às dez já estou na cama mas só adormeço pela uma, a sério mas porquê, olhe não sei às cinco e meia já estou a acordar para dar de comer às galinhas e fazer as coisas na horta

Foi assim como te conto mário, eles disseram logo que sim, não esperava isto, é pá espectacular francisco temos filme então vamos a isto

Despedimo-nos como habitualmente, mas não foi como habitualmente. Eu vou voltar mas senhor ferreira, o de lá, não fará o mesmo. No dia em travámos a nossa última luta corpo-a-corpo, eu cheguei, como habitualmente, demasiado tarde, já passavam das sete. Senhor Ferreira, o de cá, já tinha saído, Senhor Ferreira, o de lá, atendia o último cliente. Se calhar já é tarde não, senhor ferreira, é se calhar já é menino… E eu estranhei. Tão cedo não conseguiria voltar e, por isso, ainda da porta insisti

é, senhor ferreira, será que não dará assim rapidinho

Mas dá, claro. Passados alguns, breves, segundos de me ter sentado, notei-lhe uma anormal lentidão nos movimentos e no esgar, está adoentado senhor ferreira. Olhe menino, tive uma das piores coisas que se pode ter, achei que estava a fazer pouco nunca o ouvi queixar-se de nada, então que se passou está a brincar, não estou não, teve um avc foi não me diga senhor ferreira, não menino tive um cancro no baço. A filha aparece, pai no fim estou lá fora e eu muito envergonhado peço-lhe desculpa, não fazia ideia que o seu pai tinha estado doente se soubesse não tinha vindo a estas horas peço-lhe imensa desculpa, ora essa ele está rijo ele quer é trabalhar deixe-se estar à vontade. Agora estou melhor menino mas tive que vir porque já não conseguia estar em casa já estive dois meses mas não consigo estar mais pintei a casa toda, andei a pegar nos baldes e tudo mas e o esforço senhor ferreira os médicos devem-lhe ter dito para ter cuidado. …Depois já não tinha mais nada para fazer e se começamos a pensar muito nas coisas não é bom sabe ficamos meios, sabe, eu ainda surpreendido por senhor ferreira estar tão falador sei, pois, senhor ferreira, ó se sei

fui levantar a nota vermelha às lumière e, quando volto, a luta do costume, mão empurra mão, braços sobrepõem-se abruptamente, repelem-se desajeitadamente, há força de parte a parte, força mesmo, violência que noutras circunstâncias transbordaria de sangue, tudo culmina num abraço, nunca o tínhamos dado antes, e beijei-lhe a face porque senti que era a do meu avô ou senti que ele também era meu avô já não sei

saí rapidamente, olhos meus que não deixo mais que se cruzem com os dele, dir-me-ia logo que não sei, ponha-se rijo, dir-me-ia logo o quê, se calhar também os tem húmidos

não olho mais para trás e já na esquina pensei outra vez

tenho que fazer o filme

já não vou fazer (já não vamos fazer, mário). à mesa a almoçar com a minha mãe, o meu irmão lucas aparece e xico tenho que te dizer uma coisa mas eu antecipo-me até que enfim cortaste o cabelo fica-te melhor assim mas devias ter cortado mais. não me responde, tem um sorriso estranhíssimo, poucas vezes lho vi, se é que posso dizer que é um sorriso, talvez só uma desajeitada fileira de dentes num boca que não se sabe comportar de outra forma naquele momento. o meu pai, o meu irmão lucas, o álvaro e eu na igreja de cedofeita (o gui não pôde vir, se calhar vai ter que trabalhar até tarde, ou não quis, podia ser eu a não querer, nem sequer lhe pergunto no dia seguinte), não sabíamos se estávamos na missa certa porque não conhecíamos ninguém até ver a careca de senhor ferreira, o de cá, junto ao padre. Apertei-lhe as mãos com força uma e outra vez ele só acena a cabeça e eu lembro-me neste momento de ele me dizer que quando o irmão estava doente se telefonavam apenas uma vez por dia só para lhe perguntar estás bem e desligamos menino, só isso senhor ferreira, sim menino, quanto amor aqui quantas personagens do Ford a passarem na minha cabeça e depois disso já só ouvi o meu pai dizer lá fora

tem que vir para a cadeira do seu pai hã, ouviu, força, os meus sentimentos

senhor ferreira, o de lá, nunca me chamou menino, chamava-me doutor. senhor ferreira, o de cá, também me chama assim, mesmo depois de lhes ter dito umas quantas vezes para não o fazerem. Mas na minha cabeça eu sempre ouvi menino, como os avós dizem aos nossos pais quando somos meninos: então e o menino, cristina, já lhe deste de comer, não será melhor deitá-lo agora está cheio de sono, deixa o menino aqui, fica todo contente a brincar com as galinhas e depois faço-lhe umas batatas fritas
  

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