quinta-feira, 5 de março de 2020

O meu desejo está no lugar para onde disparo

“No fim da Primeira Guerra Mundial, quando Griffith chega à frente de combate francesa para rodar o seu filme de propaganda, a fase arcaica da guerra terminara havia muito tempo, desde 1914, com a Batalha do Marne, o último combate romântico. Griffith deparou-se com um conflito que se tornava estático e onde, para milhões de homens, a acção principal consistia em fixar-se nos territórios, camuflando-se durante meses (...) entre a proliferação impressionante de cemitérios e valas comuns. (...)
 
A olho nu, o imenso campo de batalha que tinha diante de si parecia não ser formado por nada, nenhuma árvore ou vegetação, nem água, nem sequer terra, esvaziada do corpo-a-corpo; a dupla vítima-homicida perdera-se de vista (...). O famoso lema ‘não passarão’ ganha outro sentido, já que, efectivamente, ninguém se desloca em direcção nenhuma. Muitos ex-combatentes de 1914 disseram-me que podem ter matado o inimigo, mas nunca souberam em quem dispararam, porque a partir dessa guerra outros eram encarregados de olhar no seu lugar. Esta região abstracta, que Guillaume Apollinaire descreveu com precisão como o lugar de um desejo cego e sem direcção, só era reconhecida pelos soldados graças à trajectória dos seus tiros (‘O meu desejo está no lugar para onde disparo’) - tensão telescópica para uma aproximação imaginária, uma formalização do parceiro/adversário desaparecido antes mesmo do seu provável despedaçamento.
 
No desfasamento inesperado da visão indirecta, o soldado tem menos a sensação de ser destruído que desrealizado, desmaterializado, de perder bruscamente todo o referencial sensível em prol de uma exacerbação dos sinais visíveis. Permanentemente vigiado pelo adversário, o soldado torna-se como esse actor de cinema de que fala Luigi Pirandello, exilado da cena e de si próprio, contentando-se em actuar diante da pequena máquina, que irá depois actuar diante do público projectando a sua sombra (...)”.
 
(Guerra e Cinema, Paul Virilio)

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