Uma vez mais, forças externas impeliram-me a cometer a Grande Infâmia dos tempos modernos.
Satisfeita a fome, olhando no vazio, eis que me apetece fumar um cigarro. Penso onde tenho guardado o maço. Sinto-o no bolso do casaco. Pergunto delicadamente a um funcionário de uma tabacaria onde o posso degustar.
“Upstairs, in front of Macdonalds. It’s a smoking area”.
Prevejo o que aí vem. Subo as escadas, recordando asperamente a smoking area do aeroporto de Frankfurt.
Chego à smoking area do aeroporto de Roma. Desfazem-se as dúvidas (se é que as tive verdadeiramente): aí está ele, o ghetto. Não há subterfúgios ou falinhas mansas: fumar é ali, acantonado com os da mesma espécie, num espaço fechado, quase irrespirável. Custa-me a entrar, tal é a espessura de nicotina expelida e suspensa no ar.
Atordoado, não consigo ir muito longe. Fico ali mesmo, ao lado da porta, esperançado de que o abre e fecha de quem entra e sai me permita respirar um pouco.
Está cada um para o seu lado. Fumando de olhos pousados no nada. À primeira vista, pela forma como todos fumam, poderíamos ser levados a pensar em Pessoa e nos seus pensativos cigarros. Mas não, a hipálage não funciona. Não há hipálage. Ou então é outra, de todo o modo sem o romantismo moldado por Pessoa. Aqui não há romantismo. Há realismo, cinzento e solitário.
Saio da smoking area e parece-me ter saído de um pesado local de reflexão existencial. O cigarro não pode ter sabido bem, pois claro.
Uma hora depois, volto ao local do crime. O morto continua morto.
E agora escrevo, pensando no segundo cigarro sacrificado.
2 comentários:
tou eu 'sogadito atrás do meu balcão, a ver entrar clientes, quando um ou outro, que se pôs de nariz ao ar, lança a pergunta, que nem um puto de primária cauteloso: pode-se fumar?
sim, pode. - obrigado.
e vai embora arrastando a família atrás. hoje, pelas minhas contas, aconteceu 3 vezes. e das 3 vezes me ri. bem que me disseram que o miguel sousa tavares disse (isto correndo os típicos riscos que 'diz que disse' comporta) que em cafés o incomodava muito mais as crianças pequenas do que os fumadores...
Na Alemnha, também, vi uma coisa terrível. Numa estação de comboio, ao ar livre, mais "arejada" (bem mais...) do que a de S. Bento (estação de estugarda), um espaço demarcado no chão com linhas amarelas. Só se podia fumar ali. Num espaço ao ar livre, criam-se barreiras com pedaços de tinta no chão. Chegará o dia em que se elevarão uns muros, para a epidemia não alastrar.
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