Há dias, estava sentado a ler o jornal num café onde costumo fazer tempo. Tinha acabado de ficar perplexo com o número de páginas (5!) que o Jornal de Notícias (que até tinha em relativa boa conta) dedica à rubrica "Segurança" (estupros, roubos, pancadaria, eu sei lá) quando entra a filha do dono (deve ter aí uns 15, 16 anos) e, auto-acreditando na sua ironia perspicaz, diz (com um sotaque tripeiro não traduzível em palavras): é, é, há crise mas o Pingo Doce está cheio...
É este o efeito estupidificante do discurso da crise - entretanto tornado na crise do discurso - que a comunicação social perpetua. Oh minha menina, mas então o Pingo Doce havia de estar vazio? Que eu saiba, os supermercados ainda são locais onde se compram, sobretudo, bens de primeira necessidade: peixe, carne, legumes, leite, etc. (especialmente o Pingo Doce, que, ao contrário do Continente, por exemplo, não comercializa outro tipo de produtos que não alimentares). Portanto: se, por causa da crise, as pessoas não se alimentassem, o que era feito delas? Evaporavam? É suposto o Pingo Doce estar vazio só porque está tudo a apertar o cinto? E comia-se o quê? Da terra que já ninguém trabalha?
O pior é que a culpa não é da pobre rapariga; o que acontece é que a cabeça das pessoas, de tanto serem matraqueadas com a narrativa da crise (que vai render teses de doutoramento a muita gente), da tamanha distorção provocada por rádios, televisões, internet, etc., deixa de pensar racionalmente, com clareza, e é impelida a formular juízos perfeitamente descabidos como este, num processo mental inconsciente e repetitivo. É isto o que de assustador o quarto poder significa em tempos como o presente: o de inculcar nas pessoas já não uma atitude conscienciosa de contenção e poupança (a qual é por demais necessária, não se discute), mas, antes, raciocínios abstruzos, irracionais - tudo em vénia de um suposto sacrifício supremo que devemos à crise (que já atingiu um grau de personificação semelhante ao dos "Mercados"). É outra forma de alienação, agora camuflada sob o epíteto de "informação", já não com o escopo de desligar as pessoas da esfera política, mas de, sei lá, as impedir de viver, divertir, aproveitar o que houver de bom para aproveitar (o que é visto agora quase como um vício ou desvio de personalidade). Promove-se, deste modo, a auto-flagelação mediática no seu melhor, como se tivéssemos cometido, num passado sombrio de que já ninguém se lembra (e são tantos os que agora vêm doutrinar que nunca, mas nunca, deixaram a torneira ligada enquanto lavavam os dentes), um pecado capital. Em todo o lado o jornalismo nos impinge a crise, de tal sorte que todos temos que a sentir, reflectir, recear - no limite, todos temos que estar em crise.
Não duvido da gravidade daquilo que se nos depara. Mas o que se passa no campo político é da política; já não há desculpa para a comunicação social não conseguir - não querer, pois o panic now! faz vender, já se sabe - falar noutra coisa que não no quanto fodidinhos estamos. No ponto a que chegamos, já não vale dizer que o jornalismo tem a responsabilidade de reportar "o que se passa"; não, dizer isso, actualmente, já só se afigura como justificação barata - e falsa - para uma evidência: o jornalismo quer vender ou, o que é dramaticamente real e sistémico, o jornalismo "tem que" vender, nem que para isso tenha de fazer do seu objecto um e apenas um tema, como se nada mais no país e no mundo se passasse. Deixem-me que vos diga que eu era capaz de escrever uma lista extenssíssima com o que de extraordinário (concertos, filmes, exposições, conferências, festas populares, jogos de futebol, et cetera) aconteceu em Portugal no último ano.
Hegel escreveu, no seu tempo, que o jornal era a oração diária do homem moderno. Pois bem, nos dias que correm, não há modernidade que resista a tamanha enxurrada (os juristas chamar-lhe-iam "diarreia", mas os juristas são pessoas estranhas), expressão máxima de um jornalismo medíocre e banal (porque é disso que se trata, pura e simplesmente: mediocridade). Não sei se tempo é dinheiro, mas o meu tempo, pelo menos, é demasiado precioso para ser delapidado por esse dispositivo de reprodução formatador (e, neste sentido, totalitário - que não haja dúvidas disto!) que nos atrofia a cabeça e os sentidos. Enfim: sempre preferia os que diziam que o mundo acabava em 2012 - tinham mais graça e eram menos prepotentes.
É este o efeito estupidificante do discurso da crise - entretanto tornado na crise do discurso - que a comunicação social perpetua. Oh minha menina, mas então o Pingo Doce havia de estar vazio? Que eu saiba, os supermercados ainda são locais onde se compram, sobretudo, bens de primeira necessidade: peixe, carne, legumes, leite, etc. (especialmente o Pingo Doce, que, ao contrário do Continente, por exemplo, não comercializa outro tipo de produtos que não alimentares). Portanto: se, por causa da crise, as pessoas não se alimentassem, o que era feito delas? Evaporavam? É suposto o Pingo Doce estar vazio só porque está tudo a apertar o cinto? E comia-se o quê? Da terra que já ninguém trabalha?
O pior é que a culpa não é da pobre rapariga; o que acontece é que a cabeça das pessoas, de tanto serem matraqueadas com a narrativa da crise (que vai render teses de doutoramento a muita gente), da tamanha distorção provocada por rádios, televisões, internet, etc., deixa de pensar racionalmente, com clareza, e é impelida a formular juízos perfeitamente descabidos como este, num processo mental inconsciente e repetitivo. É isto o que de assustador o quarto poder significa em tempos como o presente: o de inculcar nas pessoas já não uma atitude conscienciosa de contenção e poupança (a qual é por demais necessária, não se discute), mas, antes, raciocínios abstruzos, irracionais - tudo em vénia de um suposto sacrifício supremo que devemos à crise (que já atingiu um grau de personificação semelhante ao dos "Mercados"). É outra forma de alienação, agora camuflada sob o epíteto de "informação", já não com o escopo de desligar as pessoas da esfera política, mas de, sei lá, as impedir de viver, divertir, aproveitar o que houver de bom para aproveitar (o que é visto agora quase como um vício ou desvio de personalidade). Promove-se, deste modo, a auto-flagelação mediática no seu melhor, como se tivéssemos cometido, num passado sombrio de que já ninguém se lembra (e são tantos os que agora vêm doutrinar que nunca, mas nunca, deixaram a torneira ligada enquanto lavavam os dentes), um pecado capital. Em todo o lado o jornalismo nos impinge a crise, de tal sorte que todos temos que a sentir, reflectir, recear - no limite, todos temos que estar em crise.
Não duvido da gravidade daquilo que se nos depara. Mas o que se passa no campo político é da política; já não há desculpa para a comunicação social não conseguir - não querer, pois o panic now! faz vender, já se sabe - falar noutra coisa que não no quanto fodidinhos estamos. No ponto a que chegamos, já não vale dizer que o jornalismo tem a responsabilidade de reportar "o que se passa"; não, dizer isso, actualmente, já só se afigura como justificação barata - e falsa - para uma evidência: o jornalismo quer vender ou, o que é dramaticamente real e sistémico, o jornalismo "tem que" vender, nem que para isso tenha de fazer do seu objecto um e apenas um tema, como se nada mais no país e no mundo se passasse. Deixem-me que vos diga que eu era capaz de escrever uma lista extenssíssima com o que de extraordinário (concertos, filmes, exposições, conferências, festas populares, jogos de futebol, et cetera) aconteceu em Portugal no último ano.
Hegel escreveu, no seu tempo, que o jornal era a oração diária do homem moderno. Pois bem, nos dias que correm, não há modernidade que resista a tamanha enxurrada (os juristas chamar-lhe-iam "diarreia", mas os juristas são pessoas estranhas), expressão máxima de um jornalismo medíocre e banal (porque é disso que se trata, pura e simplesmente: mediocridade). Não sei se tempo é dinheiro, mas o meu tempo, pelo menos, é demasiado precioso para ser delapidado por esse dispositivo de reprodução formatador (e, neste sentido, totalitário - que não haja dúvidas disto!) que nos atrofia a cabeça e os sentidos. Enfim: sempre preferia os que diziam que o mundo acabava em 2012 - tinham mais graça e eram menos prepotentes.
1 comentário:
a quesão que levantas lembra-me um bocado a questã do fora da box: quem quer ver um episódio da nova "rubrica" dos gato fedorento (que conta futres e unas) tem de levar com meia hora de brainwash da meo, onde a palavra e seus derivados são repetidos até à exaustão. em suma, não há gato fedorento sem lavagem cerebral publicitária. assim como parece ser, cada vez mais difícil informarmo-nos sem sermos mentalmente formatados para um tipo de discurso catastrofista: o discurso do aperto do cinto e de "as coisas agora estão mal e não estão para brincadeiras". esse discurso tão metralhado nos media deixa-me a pensar: "será que a estratégia desta gente, não passa, precisamente, por fazer o máximo de ruído à volta deste tema tão sério e grave, para camuflar outro assunto ou será que estão só a tentar vender o máximo de peixe enquanto podem?". como exemplo temos a supra-sumo das questões: as reformas estruturais, autêntico santo graal das soluções para o crónico endividamento português. o que é que de estrutural foi reformado desde que os problemas começaram a surgir? que opções foram tomadas que podem vir a ser fulcrais no futuro? honestamente passa-me um bocado ao lado, e se calhar de muito boa gente. ou por essas reformas não serem assim tão boas, ou por só serem boas na óptica caciquista dos boys que vão alternando no poder.
mas é, de facto, uma pena que tenhamos de alternar entre um o discurso positivo socratista (propaganda) de que o país está óptimo e se recomenda, com o discurso catastrofista da crise. encarar com seriedade a inteligência dos consumidores de informação nunca foi opção que singrasse.
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