domingo, 15 de janeiro de 2012

o descontrolo



La Peau Douce (1964), François Truffaut.


Talvez que nunca o ímpeto sexual, o desejo libidinoso descontrolado, tenham ficado tão evidentes no cinema como em La Peau Douce (1964, François Truffaut), mais concretamente, na cena em que Pierre (Jean Desailly) leva Nicole (Françoise Dorléac), a sua amante, a jantar a um restaurante onde, como ela lhe pediu, também se dance.

Terminado o jantar, Nicole está com o diabo no corpo e quer dançar. Pede que Pierre a acompanhe, mas este confessa-lhe que nunca soube dar um passo de dança. É um retrato duro, ainda que típico, da figura do intelectual (Pierre publica livros e gere uma revista literária): o tipo cerebral, imerso no mundo da razão e da lógica, incapaz, por isso, de estimular os sentidos através de uma coisa tão radical (ou simples, conforme as perspectivas) como abanar o corpo ao som da música. O tolhimento de Pierre é confrangedor, e ele, sabendo disso mesmo, diz uma das coisas mais estúpidas e desajeitadas que um homem pode dizer a uma mulher. Quando Nicole lamenta que, se ele não a acompanhar, ficará sozinho na mesa, Pierre afirma, com um sorriso aparvalhado, qualquer coisa como “eu fico a ver-te, dá-me prazer”. Ela ri-se despreocupadamente e, numa cena de uma sensualidade extraordinária, dança freneticamente, cheia de graça, na pista. Pierre examina-a obcecadamente, e é nesse preciso momento que se faz luz: Nicole representa, numa mulher, tudo aquilo que Pierre nunca foi – a emoção, a carnalidade, a volúpia. Pierre faz parte daqueles que pensam o mundo; Nicole, dos que o vivem e transgridem. Entre um e outro está um universo, e se compreendemos o que nela lhe agrada, o contrário já não se afigura tão evidente (a não ser a estabilidade burguesa, coisa que literalmente falta a uma hospedeira de bordo, sempre “cá e lá”).
No momento em que Truffaut filma a lindíssima Françoise Dorléac, de perfil, no meio da pista – como se esta fosse só sua – arranjando, com lascívia, o cabelo, Pierre atinge o zénite: incapaz de se controlar, de ficar, ali, “a ver”, mas incompetente, ao mesmo tempo, para se abeirar de Nicole, saca de um prospecto do bolso onde procura o número de telefone de um hotel para os dois passarem a noite. O modo como Truffaut monta toda esta cena – vaivém entre os planos de Nicole, dançando (movimento, leveza), e Pierre, sentado e impotente (rigidez, calculismo) – é de uma tensão extrema e, arrisco dizer, quase sexual. Ao vê-la dançar, Pierre está num estado de excitação intenso e, desejoso de avançar para Nicole, de a possuir, toma as medidas necessárias para o efeito, já que esse passo não pode ser dado no local em que se encontram. A forma como Pierre recorre ao prospecto, impaciente e nervoso, é demonstradora do desejo, incontido, que o atravessa e, simultaneamente, da sua incapacidade para possuir uma mulher de outra forma que não pelo acto sexual propriamente dito. É, permitam-me a falta de solidariedade masculina (isto existe ou é só entre as mulheres?), toda uma falta de charme.

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