Sai hoje para as bancas o último número do Artes Entre As Letras, onde escrevo sobre os mais recentes filmes do Ozon, Lanthimos e Wan. Bons filmes e boas leituras.
***
Uma Nova
Amiga (2014), François Ozon ★★★★
O
modo como, nos primeiros minutos, Ozon “despacha”, de modo tão enxuto quanto fluido
e sugestivo, o passado das personagens que daí em diante acompanharemos, condensa
a essência do cinema do francês: um classicista, sim, mas alguém que domina e
gosta de brincar com a linguagem cinematográfica na sua totalidade (movimentos
de câmara, planos, enquadramentos, citações cinéfilas, marcas meta-narrativas),
razão pela qual, ao contrário de alguns, não temos problemas em ver nele um auteur por mérito próprio, não obstante
a sua sensibilidade “pop” e o facto de habitar no seio da indústria francesa.
Embora hitchockiano e chabroliano (de que é exemplo Dentro de Casa, 2012), os seus últimos dois filmes – incluindo este
– afastaram-se um pouco dessa linhagem (se bem que Psycho seja aqui claramente citado, quer no plano da cabeleira
loira vista de costas pelo espectador, quer na própria casa utilizada, a
lembrar a dos Bates); de facto, e tal como no excelente Jovem e Bela (com essa revelação tão bela quanto talentosa chamada
Marine Vacth), Ozon está em terreno eminentemente melodramático (mais próximo,
por exemplo, de um Almodóvar), o qual é explorado mediante a história de um
homem (Romain Duris, interpretação soberba) cuja morte da mulher o leva a
retirar os esqueletos (e os vestidos) do armário e afirmar a sua vontade de ser
mulher. Ozon trata do tema (deste e, inerentemente, do do Corpo, tema-maior do
seu cinema) sempre com subtileza, contenção e uma sofisticada economia de
meios, nunca oferecendo leituras simplistas ou assertivas – muito menos
moralistas ou panfletárias – sobre os dramas da identidade e orientação sexual
quer de Duris, quer da personagem interpretada não menos brilhantemente por Anaïs Demoustier, cuja eventual homossexualidade
é, por sua vez, questão tão ou mais enublada (será mesmo homossexual ou a
atracção pelo mesmo sexo se resume a uma obsessão pela amiga falecida?; mas, nesta
última hipótese, porquê a alucinação do marido com outro homem no banho?). Há
muitos e excelentes motivos (a cena de amor entre os dois, a música da cantora
de cabaret que ressoa intra-diegeticamente ao longo de todo o filme), portanto,
para continuar a acompanhar atentamente o trabalho de Ozon, cineasta que tem
conseguido construir a sua prolífica carreira sem nunca abdicar de uma
personalidade artística própria.
A
Lagosta (2015), Yorgos Lanthimos
★★★
Depois
do furor causado pelo não menos insólito Canino
(2009), o grego volta à carga com este “conto moral” sobre uma sociedade
distópica onde a conjugalidade é a norma social coercivamente imposta, sendo os
“casos desviantes” enviados para um “internamento” de 45 dias no “Hotel”, ao
fim dos quais, caso o indivíduo (no caso, Colin Farrell) não se emparelhe com
outrem, é transformado num animal (e Lanthimos bem poderia ter explorado um
pouco mais essa transformação, pois o seu filme grita “fábula” por todos os
lados). No Bosque, a “Resistência”, liderada por Léa Seydoux, combate o
“pensamento dominante” sob o signo, no extremo oposto, da rejeição absoluta do
amor e do compromisso. Lanthimos é, a par de Athina Rachel Tsangari (Attenberg, Chevalier), representante de um cinema grego mais recente caracterizado
pelo gosto pelo insólito, o humor negro e o niilismo, e esta paródia às
relações humanas, aos efeitos da tecnologia das “redes sociais” nas mesmas (a
busca obsessiva por um “aspecto em comum”, por mais absurdo ou inócuo que seja,
como sangrar do nariz, para justificar a “compatibilidade de perfis” com
outrem e assim escapar ao fatídico destino, tal e qual as redes
sociais que a toda à hora nos sugerem que nos “conectemos” com esta
ou aquela pessoa por ela ter gostos ou interesses em comum connosco) e às
convenções sociais, seguindo nessa mesma linha, não se torna nunca previsível
ou redundante, ao mesmo tempo que deixa espaço para a construção de um drama
(no sentido clássico do termo) sério e sensível que, na sua essencialidade, é o
que subjaz a toda e qualquer relação amorosa.
The
Conjuring 2 – A Evocação (2016), James Wan ★★
Não
partilhamos do entusiasmo que alguma crítica tem votado a Wan (até mesmo no sétimo
volume da inenarrável saga Velocidade
Furiosa – sim, Wan é habilidoso, mas ainda não faz magia…), que assina aqui
a sequela do filme de 2013, também por ele realizado (ele que é igualmente o
produtor da saga de terror Saw). Não
se nega o virtuosismo e a sofisticação do australiano (nascido na Malásia) no
manuseamento da câmara e, mais abrangentemente, no domínio de toda a técnica
cinematográfica; simplesmente, isso – e o (exíguo) subtexto “político” do filme
(a importância da família, a censura da Igreja aos desvios à norma, a
“insistência” da televisão em Margaret Thatcher…) – não é suficiente para afastar
a sensação de estarmos perante apenas mais um filme de terror, no sentido de um
redutora persistência em convenções e tiques do género, que não se move um
centímetro para lá do que ele (género) pressupõe e o espectador espera (efeito
perverso, este, quando ao terror se pede justamente… imprevisibilidade). Aliás,
mesmo naquilo que é central – o terror, voilà
–, o filme, não sendo especialmente intenso, é, todo ele, um repositório de
velhos truques (luzes que se apagam, portas que se fecham, ruídos estranhos,
torneiras a pingar, etc.) cuja reprodução sucessiva, além de conferir um certo
traço caricatural ao filme, transmite ao espectador a fastidiosa sensação de
estar a entrar num carrossel e de cada noite na casa da família Hodgson – e
porquê que o terror não se manifesta de dia? Há algum primarismo nesta
dicotomia tão rigidamente assim tratada – ser mais uma metódica “volta” em que,
ao início, colocamos o cinto, depois enfrentamos a adrenalina e finalmente
descansamos – só até à próxima volta.
Sem comentários:
Enviar um comentário