segunda-feira, 13 de junho de 2016

O amor não é cego


Tenho poucas dúvidas de que, no final declaradamente aberto de A Lagosta, filme-paródia das relações humanas e do modo como a tecnologia da "socialidade" as tem contaminado, Colin Farrell não se chega a cegar a si próprio, embora - isso já concedo - talvez diga a Rachel Weisz que sim, que o fez. E há duas, pelo menos duas, boas razões para acreditar nisso.

1. A primeira razão assenta no seguinte: o acto de infligir a si próprio a cegueira seria, apenas e só, algo estúpido e sem qualquer ligação com a comunhão, física e espiritual, que o amor supõe. Tão estúpido como o facto de, durante a parte do filme passada no Hotel, os “internados” procurarem algum “aspecto em comum”, por mais absurdo ou inócuo que seja (como sangrar do nariz), para justificar a “compatibilidade de perfis” com outrem  e assim escaparem ao fatídico destino (tal e qual as redes sociais que a toda a hora nos sugerem que nos “conectemos” com esta ou aquela pessoa por ela ter gostos ou interesses em comum connosco). Essa mesma estupidez é inclusivamente “praticada” pelo próprio Farrell com Weisz no Bosque, no sentido em que se aproxima desta pelo facto de, tal como ele, também ela ter... miopia. É, aliás, “com base” nessa circunstância que se vêm a apaixonar. Depois de Weisz ficar cega, e como se já não existisse uma "razão" – um “aspecto em comum”, lá está – para estarem juntos, ele pergunta-lhe se ela sabe falar alemão, se gosta de mirtilo, etc. etc., tudo tentativas de restabelecer novamente a tal “compatibilidade” perdida (como um "ponto de acesso" de Wi-Fi que precisa de ser novamente encontrado...). Ora, é a tomada de consciência de que é, afinal, o amor genuíno aquilo que os une, e de que esse amor dispensa esse tipo de “compatibilidades” absurdas, que justificará, por isso, a desnecessidade desse acto auto-mutilador (até porque, se existem "actos de loucura" românticos com a sua razão de ser, pelo menos num plano idealista, este, servindo apenas para cumprir uma formalidade, um requisito, não é um deles). Eles não precisam disso; eles amam-se e isso é suficiente, aliás, é tudo. A sua relação está noutro patamar, muitíssimo distante quer do do Hotel, quer do do Bosque, desde logo por ser um patamar "natural", i.e., livre e desejado (e não imposto coercivamente).

2. Farrell e Weisz são duas pessoas que, perante duas "ideologias" extremas (a conjugalidade obrigatória que a norma social, personificada pela Cidade e pelo Hotel, impõe, de um lado; a rejeição absoluta do amor e do compromisso que a "Resistência" postula, do outro), não se sentem bem com nenhuma delas. São, por isso, duas pessoas que, naquele estado de coisas, mantêm uma certa lucidez e continuam a acreditar que há espaço para relações amorosas relativamente saudáveis e, enfim, equilibradas (note-se no primeiro "click", próprio da sedução e do desejo humanos, entre os dois, diametralmente oposto aos "engates" pré-programados que vigoram no Hotel: uma breve mas intensa troca de olhares no Bosque). Por isso é que ambos fogem do Hotel, primeiro, e do Bosque, mais tarde. Ora, no Hotel, há, ainda antes do seu encontro, uma cena importante: depois de Farrell se "emparelhar" com a "Mulher Insensível" e esta descobrir o embuste, ela diz-lhe, sentenciosamente (como quem clica no botão unfriend), qualquer coisa como: "Tu mentiste e uma relação não se compadece com mentiras". Resultado: o fim "automático" da relação, o castigo que Farrell terá que cumprir e, mais importante do que tudo, a afirmação imperial de um axioma - numa relação, não pode existir qualquer tipo de mentiras (que a "mentira" em causa seja referente à encenada insensibilidade de Farrell é algo que só sublinha a traço grosso a estupidez e o nonsense desse mesmo axioma).

Ora, esta sentença é proferida justamente por alguém situado num extremo, alguém radical ou ortodoxo que acredita e segue as regras daquele Hotel distópico (e que nessa ortodoxia se aproxima, em termos de insensatez e estupidez, da praticada, bem assim, pela Resistência, enfim, é a velha ideia de que "os extremos se tocam"). Mas a verdade, bem pelo contrário, é a de que todas as relações (amorosas e não só) podem e devem tolerar pequenas mentiras (o grau depende das concretas pessoas envolvidas), sob pena de se tornarem insuportáveis, irrespiráveis. Aliás, na cedência, na tolerância, na flexibilidade para com a pessoa que amamos, não vai também envolvida uma certa dose de "mentira" ou fingimento? Porque o fundamental entre Farrell e Weisz não é a totalitária equiparação de "perfis", porque o fundamental no amor não é, afinal, a absoluta "igualdade de partes", mas também porque uma relação amorosa, para resistir ao tempo e aos abanões, tem necessariamente de assimilar algumas "mentiras", é que Farrell, não se cegando, poderá (i.e., tem legitimidade para), eventualmente, dizer o contrário a Weisz. De facto, o amor deles, que é verdadeiro, conviverá bem com a eventual mentira de Farrell, pois isso não é o essencial. Aliás, bem vistas as coisas, isso, essa "mentira", é o menos importante - como o são, na esmagadora maioria das vezes, as "mentiras" que existem em qualquer relação de amor, incomensuravelmente menos relevantes do que aquilo que realmente importa e que tão difícil é, por si só, de encontrar com e noutra pessoa.

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