quando o meu Pai estava perto da morte, fizeram-lhe uma navalhada monstruosa no peito. sempre que penso nesse ano, nesses dias próximos do meu aniversário, lembro-me do seu corpo, do seu peito branco, magro, os pelos depilados, e de um enorme bisturi tatuado, pontos carnudos e palpáveis que ficaram. antes de o meu Pai estar perto da morte, era o senhor do costume nas salas de cinema, talvez fosse o mais assíduo do teatro do campo alegre. depois da tatuagem, porém, abandonou-as, às salas, ninguém mais o viu, com uma ou outra excepção em que o arrastei à força, no escuro.
talvez porque nas salas
nós os vivos
vemos os mortos
testemunhamos o nosso iminente destino
prevemo-nos
advinhamo-nos.
e a tua Mãe morreu, o filho da Inês nasceu, dizes que o filho do teu chefe nasceu esta manhã e tiveste a certeza, ligaram-te dois minutos depois com a notícia. três mulheres já, a de que ainda não falei perdeu o Pai, claro que vou e abracei-te e a tua Mãe também teve uma premonição em relação a mim como a outra rapariga que pressentiu ao telefone que antes da morte vem a vida. a rapariga do escritório parece que tem um tumor na cabeça, aguenta não aguenta mas ela acabou de ter uma filha como. é. possível. com um tumor na cabeça vive o meu melhor amigo há anos, foda-se e a Mãe que não o deixa sair de casa, ele não está morto pelo menos até o matarem e a doença não mata no plural. a Joana que conheci no brasil morreu, subitamente dizem, suicidou-se desconfiam muitos os pais até recusaram a autópsia e cremaram logo o corpo no dia seguinte. mas como Joana porquê em que momento pensaste que não te poderias confiar a ninguém, por favor que solidão absoluta e inesgotável foi essa sorrias tanto falavas-me com tanta serenidade no brasil, Joana que hemorragias que comprimidos foram esses será que te arrependeste no último momento quando correste para a sala Pai, não me estou a sentir bem, vou morrer e caíste, será. Joana como gostei de falar contigo enquanto caminhávamos pela noite fora a minha Mãe mais à frente eu a pensar será que ela repara, e pedi-lhe o teu número uns meses depois pedir o número à minha Mãe que vergonha mas foi assim. íamos tomar um chá, Joana, acho que era isso mas depois ias para inglaterra
e
já não consegui
mos
tomar o chá
ou café
ou o vinho que tu não bebias
ou bebias não tive tempo para
saber para saber se gostas
saber para saber se gostas
e no
meio
disto tudo eu
vou às salas de cinema
tenho medo de um dia deixar de ir, porquê
Pai
porque me mostraste
porque me mostraste
(já me mostraste coisas tão belas e nunca te perguntei porquê, desculpa
sou
injusto
e ingrato
sobretudo quando sou impaciente)
que isso
pode acontecer
pode acontecer
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