há momentos, cheiros, sensações do passado (da minha infância, sobretudo) a que só os filmes me permitem regressar. ou que mo permitem fazer com o maior grau de verosimilhança possível, circunstância irónica quando feitos por terceiros e retratando situações a que sou, biograficamente falando, estranho. são eles, os filmes, que mais perto me re-colocam dessas memórias. talvez porque estas, mesmo convocando outros sentidos que não apenas a visão (o olfacto, o paladar), são, ao fim ao cabo, "imagens" - por mais que nos esforcemos, não nos conseguimos lembrar, subitamente, de um determinador odor, mas a imagem do lugar onde em tempos ele nos entorpeceu conseguimos já produzi-la mentalmente, quase de imediato.
o cinema permite-me essa re-constituição. uma re-aproximação ideal a algumas das coisas que me são mais queridas (ou então: violentas, traumáticas), que - justamente por causa do cinema e do efeito (intelectual, sensorial, fantasmagórico, talvez por esta ordem) que foi causando em mim à medida que cresci - estão alojadas, remotamente, miticamente, em mim. se já sentia isto no acto de ver filmes, mais intensamente se me ocorreu no momento em que passei a pegar numa câmara e a ir até determinado sítio filmar este espaço concreto, enquadrar assim e não assado, fixar o chorão (o nome mais bonito de todas as árvores, talvez) do pátio do meu antigo prédio, ou os campos baldios que ficavam nas suas traseiras - se eu filmar lá uns miúdos
com as bocas enlameadas pela
polpa dos figos
com as bocas enlameadas pela
polpa dos figos
a fugirem do camponês solitário que brande uma
espingarda no ar
volto a ver ao meu lado (imagens, novamente, uma e outra vez, sempre) o tiago grande, o hugo, o tiago pequeno, o pedro, a catarina, o nuno, a pepi, todos a correrem e a tropeçarem até chegarmos ao muro, momento em que o medo absoluto começa lentamente a serenar, o suor no rosto muito vermelho da pepi que lhe destrambelha os óculos até à pontinha do nariz. se eu filmar, à noite, miúdos acocorados do lado de lá do muro
nos socalcos da quinta do senhor neca
utilizando à vez os binóculos
volto a ver as duas
volto a ver as duas
irmãs de loiríssimos cabelos do terceiro andar que
se despem imaginariamente
para nós
oiço (mas vejo) os grilos que
sem eu saber colaboram neste filme a que, uns anos antes, um senhor dera o nome the rear window e a que, agora, eu outro vou dar. por isso é que, julgo, a "ficção" é, no princípio e no fim, re-constituição, regresso a. derradeira e compensadora forma de voltarmos - recuperarmos - a uma idade de ouro que não existe mais, que talvez nunca tenha existido. que existiu, sem dúvida.
se despem imaginariamente
para nós
oiço (mas vejo) os grilos que
sem eu saber colaboram neste filme a que, uns anos antes, um senhor dera o nome the rear window e a que, agora, eu outro vou dar. por isso é que, julgo, a "ficção" é, no princípio e no fim, re-constituição, regresso a. derradeira e compensadora forma de voltarmos - recuperarmos - a uma idade de ouro que não existe mais, que talvez nunca tenha existido. que existiu, sem dúvida.
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