quarta-feira, 18 de julho de 2018

há momentos, cheiros, sensações do passado (da minha infância, sobretudo) a que só os filmes me permitem regressar. ou que mo permitem fazer com o maior grau de verosimilhança possível, circunstância irónica quando feitos por terceiros e retratando situações a que sou, biograficamente falando, estranho. são eles, os filmes, que mais perto me re-colocam dessas memórias. talvez porque estas, mesmo convocando outros sentidos que não apenas a visão (o olfacto, o paladar), são, ao fim ao cabo, "imagens" - por mais que nos esforcemos, não nos conseguimos lembrar, subitamente, de um determinador odor, mas a imagem do lugar onde em tempos ele nos entorpeceu conseguimos já produzi-la mentalmente, quase de imediato.
 
o cinema permite-me essa re-constituição. uma re-aproximação ideal a algumas das coisas que me são mais queridas (ou então: violentas, traumáticas), que - justamente por causa do cinema e do efeito (intelectual, sensorial, fantasmagórico, talvez por esta ordem) que foi causando em mim à medida que cresci - estão alojadas, remotamente, miticamente, em mim. se já sentia isto no acto de ver filmes, mais intensamente se me ocorreu no momento em que passei a pegar numa câmara e a ir até determinado sítio filmar este espaço concreto, enquadrar assim e não assado, fixar o chorão (o nome mais bonito de todas as árvores, talvez) do pátio do meu antigo prédio, ou os campos baldios que ficavam nas suas traseiras - se eu filmar lá uns miúdos
com as bocas enlameadas pela
polpa dos figos
a fugirem do camponês solitário que brande uma
espingarda no ar
 
volto a ver ao meu lado (imagens, novamente, uma e outra vez, sempre) o tiago grande, o hugo, o tiago pequeno,  o pedro, a catarina, o nuno, a pepi, todos a correrem e a tropeçarem até chegarmos ao muro, momento em que o medo absoluto começa lentamente a serenar, o suor no rosto muito vermelho da pepi que lhe destrambelha os óculos até à pontinha do nariz. se eu filmar, à noite, miúdos acocorados do lado de lá do muro
nos socalcos da quinta do senhor neca
utilizando à vez os binóculos
volto a ver as duas
irmãs de loiríssimos cabelos do terceiro andar que
se despem imaginariamente
para nós

oiço (mas vejo) os grilos que

sem eu saber colaboram neste filme a que, uns anos antes, um senhor dera o nome the rear window e a que, agora, eu outro vou dar. por isso é que, julgo, a "ficção" é, no princípio e no fim, re-constituição, regresso a. derradeira e compensadora forma de voltarmos - recuperarmos - a uma idade de ouro que não existe mais, que talvez nunca tenha existido. que existiu, sem dúvida.

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