Este mês, escrevo crítica para o Artes Entre As Letras sobre A Sombra das Mulheres, Posto-Avançado do Progresso e 10 Cloverfield Lane (que muito me surpreendeu pela positiva). Boas leituras.
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À Sombra
das Mulheres (2015), Philippe Garrel ★★★
“A
sombra das mulheres” ou “À sombra das mulheres”? O acento grave tem essa
particularidade de veicular um segundo sentido ao filme de um dos grandes nomes
do cinema e da cinefilia mundial, autêntico “resistente” que continua a fazer
os filmes em que acredita (tal como a personagem de Pierre no filme), por mais anacrónicos que pareçam (mas esse é precisamente um
dos maiores prazeres que o espectador encontra nos seus filmes). Pierre é esse
homem à/na sombra das mulheres, não no tradicional sentido que a expressão
comporta (alguém que se apequena perante a presença maior de outrem), mas no da
(falta de) luz que perpassa a sua personagem: triste, apagada, sorumbática. Pierre
é, justamente, uma “sombra”. Em Garrel, a velha ideia de que os filmes de um
realizador são sempre variações de um único é algo que, ao contrário do que
acontece com muito boa gente, não causa fastio ou irritação, de tal modo é
honesto e delicado o tratamento que dá ao tema-maior de sempre do seu cinema, o
amor e as suas vicissitudes. Neste como nos seus filmes mais recentes, a
monotonia (tão condizente, plasticamente, com o preto e branco trabalhado pelo
francês) e o ciúme são os grandes alvos da atenção de Garrel, ao mesmo tempo
que, sem pretensões políticas ou “sociológicas” declaradas, vai também comentando
a realidade dos nossos dias (o trabalho precário, os salários exíguos, as
condições débeis para a investigação científica, enfim, as dificuldades de
viver condignamente). Talvez a revelação final (acerca do ex-militar que Pierre
filma para o seu documentário), no que de desilusão e frustração carrega, condiga
bem com o próprio final do filme, um “happy
end” desesperado entre dois seres cada um numa frágil jangada quase a
naufragar. Ou será que o amor é também – é
ainda – isso, uma radical, derradeira forma de salvação?
Posto-Avançado
do Progresso (2016), Hugo Vieira da
Silva ★★
Quando se lê as entrevistas a
Hugo Vieira da Silva, fica-se com a mesma impressão com que se sai da sala: as
premissas eram boas, excelentes, a conclusão, o resultado final, é que não. O
que é pena, desde logo por continuarem a escassear no nosso país, com raras
excepções, abordagens cinematográficas meritórias ao nosso passado colonial. O
realizador nunca parece ter unhas para adaptar a obra de Joseph Conrad (An Outpost of Progress, de 1897) ao
contexto colonial português do século XIX, quer no tratamento do argumento, já
de si um pouco canhestro (quão confusa e mal contada uma simples história de
venda de marfim…), quer no próprio aproveitamento do material visual e fílmico
à sua disposição – para filmar a selva assim, com muitos planos americanos e
planos médios (e poucos planos gerais e de conjunto) e sem nunca tirar partido
do capital natural (e cinematográfico, et
pour cause), para quê ir para tão longe, para Angola? É essa sensação – de desperdício
– com que se fica, não obstante sobressair, pela positiva, o desempenho dos
actores (sobretudo de Ivo Alexandre) ou a atmosfera claustrofóbica e de
progressiva e surrealista auto-degradação em que as duas personagens principais
se vão afundando. O travelling para
trás inicial (a câmara a afastar-se das personagens junto ao rio,
abandonando-os ao “Deus dará” no meio da selva), um dos melhores momentos do
filme, não tem, pois, correspectivo na sequência final, a pior do filme, onde
Vieira da Silva, já depois de ter piscado o olho a várias estéticas
cinematográficas historicamente distintas, ensaia uma confrangedora aproximação
ao filme mudo (e a “O Bucha e Estica”) que preferíamos não ter visto.
10 Cloverfield Lane
(2016), Dan Trachtenberg ★★★
A primeira longa-metragem do
americano é prova de que a indústria de Hollywood ainda vai conseguindo lançar,
milagrosamente, alguns “produtos” (usamos o jargão adoptado pelos próprios) nos
quais entretenimento não rima necessariamente com patetice e vazio de ideias e
em que a realização, sendo eficiente, não é meramente tarefeira e mantém mesmo
uma certa personalidade. Trachtenberg
constrói um filme
de câmara inteligente, muito seguro, o qual, mantendo o espectador
permanentemente agarrado à cadeira (como mandam as melhores regras do thriller), projecta, paralelamente, todo
um plano teórico, filosófico mesmo, relativo à dupla ameaça, “terrestre”
(personificada por Howard, interpretado pelo excelente John Goodman) e extraterrestre,
enfrentada por Michelle (Mary Elizabeth Winstead, actriz que não conhecíamos e
a quem auguramos bons voos). Ela é a mulher que, após um acidente de carro (na
sequência da fuga de casa e de uma relação sobre a qual nada sabemos, a
lembrar, desde logo pelos grandes planos sobre o seu rosto, a fuga de Janet
Leigh em Psycho), é fechada numa cave
por um estranho que se diz seu salvador pelo facto de a manter protegida de um
ataque (químico? extraterrestre?) que entretanto assolou o planeta, no que o
filme ecoa o pavor generalizado contemporâneo relacionado com as sucessivas notícias
verídicas de pessoas aprisionadas em casas durante anos (aliás, o
recém-estreado Quarto é expressão
disso mesmo). O “dilema do prisioneiro” é aqui, então, o de fugir ou não da
cave (do escuro) e saber se algo aconteceu realmente lá fora (à luz) ou se
Howard lhe mentiu, percurso ascensional muito platónico, claro, como se de uma
“alegoria da caverna” se tratasse (e a escadaria de casa que dá acesso ao mundo
exterior não podia ser mais ilustrativa). O filme tem J. J. Abrams, o
“afilhado” de Spielberg, como produtor, por sua vez a fazer aqui de “padrinho”
de Trachtenberg, facto algo irónico quando ainda
esperamos pelo regresso do próprio Abrams à sua melhor forma desde Super 8 (preferimos pura e simplesmente
esquecer-nos do último produto da saga Star Wars).
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