Hoje, são exibidos, entre outros, Fim de Linha (2016, Paulo D'Alva e António Pinto) e Abigail (2016, Isabel Penoni e Valentina Homem) nas competições nacional e internacional, respectivamente.
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Fim de Linha
Realizado
por Paulo d’Alva (presente em edições anteriores do festival com “A noite
cheirava mal” e “Carrotrope”) e António Pinto, este é um filme de contrastes: a
animação e as imagens de arquivo, a cor e o preto
e branco, a musicalidade (cortesia dos Dead Combo) e a mudez das personagens, o
registo surrealista (predominante) e o realista (proveniente das referidas
imagens de arquivo), enfim, a omnipresente – mas ambígua – noção de tempo (os
inúmeros relógios que vão aparecendo simbolicamente) e a descontinuidade
temporal e lógico-narrativa de todo o filme. Quebra-cabeças misterioso e
intrincado para o espectador, mas não menos poético e melancólico, do filme
poder-se-ia sugerir ser, todo ele, um sonho, um delírio, enfim, uma fantasia
própria de uma criança que não quer crescer, ideia favorecida pela sensação de
recusa da passagem do tempo (12h17m e 20h17m são as horas que, invariavelmente,
os relógios apontam) e de uma certa nostalgia pela infância (o baloiço, o miúdo
defronte do combóio). São várias as pistas e as “pontas soltas” interpretativas
que vão sendo deixadas aqui e ali (o “Crime e Castigo” de Dostoiévski…), mas é
na contemplação e não tanto na decifração que está o poder encantatório do
filme (e, afinal, de toda a arte). Ao contrário do que tantas vezes se ouve, o
combóio não passa apenas uma vez.
Abigail
Se um documentário é sempre um processo de
aprendizagem para o próprio realizador, no sentido em que, à medida que vai
filmando o seu objecto, o vai descobrindo e conhecendo mais aprofundadamente,
este filme, presente em Cannes 2016, leva tal ideia a um inteligente grau de
literalidade “visual”. De facto, num movimento simultaneamente fílmico e
epistemológico de “fora para dentro” (característico, justamente, de todo o
processo de aprendizagem), do exterior para o interior, as realizadoras partem
de um jardim abandonado para entrar na casa de Abigail Lopes, mulher que sempre
se bateu pela pacificação e convivência entre índios e não-índios e que
inclusivamente viveu durante oito anos com o seu companheiro e histórico
sertanista Francisco Meireles junto dos índios Xavantes da Serra do Roncador
(Mato Grosso). Sempre de câmara à mão, as realizadoras
vão andando, literalmente, “de porta em porta” (de obstáculo em obstáculo),
quase sempre no escuro, desse modo progredindo, às “apalpadelas”, na decrépita
casa, cuja forma labiríntica rima com a dimensão mágica, mística, espiritual
(no caso, o candomblé) de Abigail, patente nos objectos de culto e outras
memórias que pululam neste “templo” improvisado. O registo documental
(alternado com valiosas imagens de arquivo dos índios Xavantes nos anos 40),
sendo predominante, não deixa de ser “provocado” por um ou outro elemento de
ficção, desde logo a mulher (Abigail?) que a câmara vai perseguindo num jogo do
“gato e do rato” no qual, à medida que mais nos aproximamos dela, mais ela nos
continua a escapar (e não é assim todo o processo de aquisição de conhecimento?).
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