sábado, 25 de dezembro de 2010

schnee



(Blu & Exile - "Seasons")

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

a impessoalidade já existia quando deixámos de embrulhar os presentes em casa, com papel bonito e especialmente arranjado para o efeito, e passámos a fazê-lo em filas intermináveis nas próprias lojas onde compramos o presente.
mas agora ela tocou no fundo: não só nos deixamos quedar, atordoados, nessas mesmas filas, como também nos convidam a preencher, ali mesmo, com uma caneta gentilmente cedida pela funcionária, o de e o para constantes da etiquetazinha que, qual atestado de afectuosidade natalícia, colamos no papel de embrulho.
saímos e já nada mais há a fazer com aquele presente, o processo está concluído. agora é só entregá-lo - já que não o damos nem oferecemos -, como se entrega uma pizza ou uma carta de correio.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

greve geral

(texto publicado no Jornal Tribuna nº 27/Dezembro de 2010, papel impresso)

Eram dias bons, esses.

A excitação começava uns dias antes, quando ouvíamos as notícias na televisão ou quando os pais comentavam à mesa. Perguntavam-me

E na tua, também vão fazer, filho?

Como nem na escola tinham a certeza, eu nunca dava uma resposta segura aos meus pais. Dizia sim, pai, talvez, a menina do PBX disse que ia fazer.

Enquanto isso, o dia aproximava-se. Até lá, tudo se passava como se nada existisse, embora a verdade fosse outra. Sentia-se uma atmosfera de ligeira sublevação que, para ser ainda mais provocadora para as nossas pueris cabeças, nunca era confirmada ou desmentida pelos funcionários.

É verdade aquilo de quarta, menina?

A resposta vinha sempre descontraída, indiferente

Não sei de nada. Vá, toca a andar, que há mais gente na fila para dar a senha!

Então íamos jogar à bola, um “meiinho” rápido ou até um joguinho de 10 minutos (suficiente para nos deixar a suar em bica, mesmo nos dias mais gelados), se a professora era a de Inglês, que chegava sempre depois do toque dos dez minutos, ímpeto normativo superior que tantas vezes era contrariado pelos próprios a quem a garantia se destinava: os professores, tão sequiosos de ter os alunos a horas na sala de aula.

Sempre há ou não na quarta feira?

Perguntávamos, entre uma finta à Ronaldo (o brasileiro, o melhor) e uma zaragata breve com um dos mânfios da moda lá da escola (eles iam e vinham, conforme o élan formado por circunstâncias várias que não vale a pena enunciar; no outro dia passou um por mim que me reconheceu, e não desfez o rosto ameaçador que me dispensava em tempos antigos).

Acho que sim, a mãe do Rui Pedro disse-lhe que sim, por isso ela não ia estar a mentir para nada.

O Rui Pedro era outro miúdo lá da escola e a sua mãe uma das funcionárias mais simpáticas. Trabalhava no bar, tinha uns olhos azuis quase transparentes e um sorriso generoso nos lábios quando nos dava o lanche misto (prensado, menina, e por favor não se diz?, ah, bem me parecia) ou a bola de berlim. O Rui Pedro era um craque, chegou a jogar no Boavista e perdeu-se (ou o futebol perdeu-o a ele, que interessa isso agora) como tantos outros prodígios na noite, nas miúdas e nas farras. Fez bem, penso para mim agora. Jogar futebol a sério num clube com 13, 14 anos, é um compromisso pelo qual algumas pessoas adultas nunca passaram.

Mas a busca não cessava. Falava-se com amigos de outras escolas

Vão fazer na tua?

Não se sabe, e na tua?

Também não.

Nenhum de nós sabia, e os funcionários que sabiam ficavam mudos e quedos. Havia um acordo tácito entre eles de não nos revelar o que aconteceria na quarta-feira (pena ser na quarta e não na quinta em que tínhamos o dia todo com aulas, quem é que marcou isso para quarta?) e que lhes dava um certo ar de grupo, de união, de tribo, embora nunca como nossos inimigos. Connosco tudo aquilo parecia uma brincadeira do gato e do rato, embora pressentíssemos que eles guardavam segredo por alguma razão deveras importante. Mais estranho ainda, não os víamos juntos, conversando e arquitectando silenciosamente o dia D, mas, pelo contrário, agiam todos naturalmente, sorridentes e antipáticos como sempre, conforme os havia.

Chegava a véspera. Saíamos às 18h30, um frio de morrer, uma multidão de rapazes e raparigas em alvoroço despedindo-se com a incerteza de se verem no dia seguinte, facto causador de extrema excitação. O mundo era, naquela altura, tão pequeno para nós, e ao mesmo tempo tão estável e certo, que apenas uma dúvida, uma incerteza, uma ambiguidade minúscula como esta - sobre o que é que iríamos fazer no dia seguinte - nos deixava num frenesim tremendo. Era o nosso cândido mundo a ser desafiado por uma força estranha que, pela primeira vez, nos mostrava que por algum motivo não palpável – e que não passava pela superior vontade dos nossos pais - poderíamos sofrer uma alteração no nosso quotidiano que não conhecíamos nem dominávamos. À noite, para adormecer, irrequieto. Trocavam-se algumas mensagens (sim, já estamos por esta altura na época em que as pessoas não nos olham nos olhos enquanto falamos com elas por estarem a escrever mensagens) com os amigos mais próximos a saber de alguma boa nova… mas nada: a dúvida persistia, essa terrível e fina hesitação sobre o que se avizinhava corria como adrenalina extra nos nossos corpos franzinos.

No dia seguinte, o mesmo de sempre: cadeado a sete chaves e nem uma vivalma no interior da escola. Se as aulas começavam naquele dia às 8h30, ainda era possível assistir a alguma confusão: pais e filhos inundando a rua, carros mal estacionados e buzinões, pais que se indignam com a “preguiça” dos funcionários públicos, etc. Se só se chegava à escola mais tarde, o cenário era inexpressivo por completo: ninguém, absolutamente ninguém, se querem fazer perguntas voltem no dia seguinte, murmuravam os cadeados. A escola, com os seus canteiros coloridos à entrada, parecia agora outra, muda e deserta, como se tivesse sido manietada temporariamente por alguém que a conhecia bem, um amigo íntimo, talvez. Inspirava, ainda assim, uma certa força, por ser inocente e alheia às causas do acontecimento do dia, pelo que sempre me pareceu que aquele estado de coisas seria sempre momentâneo. Olhando para ela, sentia-lhe uma vontade invencível de se libertar dos cadeados e abrir novamente as suas portas aos alunos.

No entanto, de uma forma ou de outra, o dia já estava ganho. Por breves momentos, eu ainda reflectia sobre os dias anteriores. Pensava nos rostos indecifráveis dos funcionários e dos professores, nos conluios disfarçados nos vãos de escada que nunca cheguei a ver, no “nim” que todos me haviam dado. Mas era sol de pouca dura, pois havia um dia livre para gastar! Um dia sem aulas, sem intervalos, sem hora para almoçar, sem sair às 18h30 e apanhar o autocarro. Era um pequeno terramoto no nosso quotidiano, dos bons e inofensivos. Como até esse dia a incerteza tinha reinado, naturalmente que nenhum de nós havia feito planos para como passar o dia - ainda melhor, ainda mais libertário e anarca nos parecia! Às vezes, ficávamos pelas redondezas, levando uma bola para nos distrair e despedindo-nos pela hora do almoço. Outras vezes descíamos a avenida, com as mochilas saltando pelo ar nas nossas costas, e íamos até à beira-mar, onde havia um colégio com raparigas bonitas que não estava fechado, ao contrário da nossa escola. Também me lembro de irmos para casa uns dos outros conversar em grupo (os mais precoces sacavam de cigarros “West”, marca que na altura comercializava uns baratíssimos maços de dez cigarros) ou jogar computador. Tudo com uma perfeita sensação de estar a viver fora das regras, de estar a desafiar a normalidade… por um dia. Chegava.

O dia passava e era altura de voltar para casa, esse um desígnio que nenhum terramoto se atrevia a alterar (por enquanto, por enquanto).

Então, filho, sempre foi, não foi? Que fizeste durante o dia?

E contávamos o que tínhamos feito, que nem tinha sido nada de muito especial, mas que ganhava um valor imenso só por pertencer a um dia em branco, um dia que saltara inusitadamente os números do calendário e trocara as voltas à contagem rigorosa do ano civil. Um dia que ficou num buraco negro qualquer (talvez num dos que estudávamos em “Ciências da Natureza”!), sozinho, límpido e bom.

No dia seguinte, a normalidade era reposta, como se os funcionários e os professores a tivessem autorizado de novo a tomar contar do nosso tempo. Quanto a esses, continuavam, um dia depois, exactamente iguais, sem tirar nem pôr. Indagava sobre o que teria mudado para eles no dia anterior, se é que alguma coisa teria mudado. Talvez não, talvez também só precisassem de um dia em branco para brincarem, para se restabelecerem do maquinal dia-a-dia. Retemperadas as forças, e deixados de sobreaviso os responsáveis pela normalidade, voltavam a pôr a escola a funcionar e nós voltávamos a jogar meiinhos e a chegar esbaforidos às aulas e a pedir lanches mistos e bolas de berlim nos intervalos.

Mais tarde, os dias tornaram-se diferentes.

Passaram (passei) a chamar-lhes de “greve”. Ingénuo, procurei saber o que queria dizer e por que razão acontecia. Interessei-me pela matéria e comecei a ter ideias sobre ela. Esses dias deixaram então de ser dias “brancos”, buracos rebeldes nos nossos calendários de crianças, para passarem a ser dias em que homens e mulheres manifestavam o seu descontentamento com a forma como alguns senhores importantes tomavam conta do país. Dias em que homens e mulheres perdiam algum dinheiro do seu salário para se juntarem e reclamarem mais algum dinheiro para o salário de todos. Dias em que milhares de pessoas diziam coisas feias sobre os tribunais, as escolas (sobre a minha escola também!), o governo, o parlamento, os bancos. Dias em que os professores e os funcionários da minha escola não brincavam, como nós.

Tenho pena que o meu crescimento tenha sido na mesma razão em que este país se foi afundando e que os dias brancos, os tais das greves, não tenham servido para os senhores importantes reflectirem. Esses sim, brincaram como nós, com a diferença de pertencerem ao mundo dos adultos, esse espaço tão perfeito e sincronizado aos meus olhos de criança.

O meu mundo e o dos meus amigos de então deixou de ser pequeno e previsível. Não sei o que eles pensam hoje das greves nem quero saber; prefiro continuar-me a lembrar das tardes em que as aproveitávamos para nos divertirmos. Mas eu cresci e por isso o meu mundo também; mas o mundo dos funcionários e dos professores da minha escola, que já era instável e inseguro na altura, está ainda pior.

sábado, 11 de dezembro de 2010

o bom selvagem para as urtigas

Sobre O Idiota, de Dostoiévski (num brasileiro muito mal escrito e por mim retocado - fonte: http://pt.shvoong.com/books/novel-novella/1950663-idiota/):

"Ora, o que torna mais penosa a leitura desse livro, fora as mais de 600 páginas e discussões filosóficas, políticas e econômicas que o autor desenrola com paciência, é o fato de você não suportar a bondade do príncipe e, em certos momentos, se dá conta disso. Ora, ser contra a bondade? Por mais extrema que ela possa ser (o perdão, o amor), certas capacidades humanas de que nós tanto reclamamos a falta, de repente, ultrajam-nos de uma maneira tão vil.

Existiram momentos que eu pensei que o príncipe podia quebrar a cara de um, se vingar de outra, ou mandar uma pessoa para o inferno. E eu queria isso porque, naquele momento, perdoar para mim era um ultraje ao… orgulho. E quando eu me percebi pensando isso, foi aí que eu tive a certeza que o ser humano não tem a capacidade de fazer a bondade de uma maneira plena sem que, para isso, exista muito esforço dele numa renuncia dos instintos que nos controlam disfarçados sob o manto da civilização, seja lá o que isso signifique.

Mas a genialidade de Dostoiévski não está aí. A genialidade está em você, ao final de tudo, perceber que ele mostra que idiotas são aqueles que rodeiam o príncipe, com seus atos contraditórios e egocêntricos, em tudo tão parecidos a nós.

No final você percebe que os idiotas somos nós".