(The Grapes of Wrath, 1940, John Ford)
Da minha janela vejo o Bósforo todos os dias: divisões e correntes, agitações e marés. Tal como no homem, tal como no mundo.
domingo, 31 de janeiro de 2016
sexta-feira, 29 de janeiro de 2016
Walsh #39 - Sopa de Planos (Montanhas de branco lá no céu/Creed)
A nova sopa de planos é agradavelmente nebulosa. O meu ingrediente vem das ruas de Filadélfia. Para ler aqui.
Não escolhemos este plano por ser o mais bonito de Creed (Creed: O Legado de Rocky, 2015). Na verdade, como alguém muito apaixonado que aproveita qualquer razão para falar sobre a pessoa amada, também nós nos aproveitámos do tema proposto (e das escassas nuvens que se vêem neste plano, lá ao longe) para voltarmos a Rocky, às ruas de Philly, à obstinação de Adonis, à porta de casa de Bianca às três horas da manhã com aqueles graves a estoirar e uma voz a sibilar “I like when you grip”. Não foi fácil, de facto, encontrar nuvens em Creed , mas quem disse que o amor era fácil? Adonis, depois do primeiro encontro com Rocky, e no fim de mais uma corrida pela cidade que ainda não conhece, passa pelo restaurante como quem não quer a coisa, como se estivesse só de passagem, ali ao virar da esquina. Sabemos – e Rocky também – que não é assim. Numa admirável mise en scène, Adonis insiste com Rocky para ele o treinar enquanto lhe dá uma ajuda a retirar os móveis da carrinha, enérgico e bem-disposto. Surge, logo aqui, a primeira manifestação do elo sinalagmático geracional e fraternal que marca todo o filme: eu ajudo-te na tua velhice (os móveis, primeiro; a doença, depois) e tu ajudas-me na minha juventude (os treinos, primeiro; a namorada, depois), pode ser? Ainda não será desta que Rocky se “renderá”, que voltará ao ringue, mas acede em dar-lhe algumas dicas, que regista no papel, não reparando que Adonis as reescreve, ao mesmo tempo, no smartphone. Despedem-se e Rocky entrega-lhe a folha, que Adonis rejeita, dizendo-lhe, já retomando o passo de corrida, que tem o que precisa no smartphone. “E se o perdes?”. “Já estão na cloud, não há problema!”. Rocky fica confuso: na cloud? Como assim? Olha para o céu, claro, e nós, espectadores, rimo-nos com gosto, com ternura. O mesmo gosto e ternura com que os olharemos no plano final acima (“raccord de quarenta anos entre um Stallone a correr fulgurantemente pelas escadas e o mesmo a precisar de ajuda para o fazer”, como aqui se escreveu), felizes e fraternos. Estão, já adivinharam, na cloud nine, ou, se preferirem… nas nuvens.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2016
Artes Entre As Letras #7
Há dias, usei "45 RPM" para me referir a 45 Anos. No último número de Janeiro do Artes Entre As Letras, tento explicar melhor o porquê. Escrevo também sobre o último filme do Benoit Jacquot.
Diário de Uma Criada de Quarto (2015), Benoît Jacquot ★★
A
sensação com que se fica depois de sair da sala é a mesma de 3 Corações (2014), o filme anterior de
Jacquot: a de que o francês, partindo para o filme com matéria interessante
q.b., desbarata o que tem nas mãos e desorienta-se, traduzindo-se o saldo final
num filme desequilibrado, desconexo e com demasiadas pontas soltas (a
personagem do Capitão, a gravidez da criada, a morte da criança), às quais não
é dado qualquer seguimento substancial e parecendo existir apenas como sugestão
de algo narrativamente interessante que nunca chega, afinal, a concretizar-se
(os flashbacks estéreis – que nada
acrescentam à composição da personagem principal – para quê?). Ou talvez essas
pontas sejam, de um outro prisma, o reflexo de uma adaptação algo canhestra à
obra original de Octave Mirbeau, já trabalhada no cinema por gente como Renoir
e Buñuel. E é pena, desde logo pelas presenças de Léa Seydoux (Célestine, cujos
murmúrios parecem, a certa altura, indiciar uma brechtiana queda da “quarta
parede”, como se fôssemos cúmplices do seu rancor aos patrões) e de Vincent
London (Joseph), demasiado “grandes” para o filme. Depois, porque, reconheça-se,
Jacquot sabe o que faz com a câmara (e com a música), algo visível nos zoom in intensos com que se aproxima das
personagens, o que confere às cenas um tom algo surrealista, condizente com os
“crimes e escapadelas” macabros que perpassam as relações de força entre
patrões e empregados, exploradores e explorados, conquanto estes últimos não
sejam maniqueistamente pintados como integralmente “bons” (os empregados que
inicialmente destratam Célestine por ela ser, apesar de empregada, uma
“parisiense”; o anti-semitismo de Joseph). Um filme desperdiçado, portanto (que
falta fazem o requinte e a perversidade do Buñuel de Viridiana ou do Chabrol de A
Cerimónia), e do qual se salva a interpretação irrepreensível de Seydoux, a
confirmá-la como uma das grandes actrizes francesas da sua geração (e inclusivamente
de, digamos, “prestígio mundial”, como a sua chamada para bond girl no último 007 o comprova).
45
Anos
(2015), Andrew Haigh ★★★
Num
filme em que a música (e que música) está tão presente, com uma função
intra-diegética tão poderosa, talvez não seja descabido olhar para o título e
vê-lo não como significando apenas uma data, um conjunto de anos, mas também
como um conjunto de… rotações. 45 RPM,
então: é a este ritmo, maduro e bem vivido, próprio de um single tão velho
quanto maravilhoso como o “Smoke Get In Your Eyes” (dos saudosos The Platters)
a rodar no gira-discos, que Kate e Geoff (Charlotte Rampling e Tom Courtenay,
ambos estupendos) vivem o seu casamento na velhice, entre livros (e talvez a
insistência de Geoff em voltar a Kierkegaard indicie algo do que virá…),
passeios pelo campo e cups of tea, até
que uma inesperada carta lhes chega a casa, isto a uma semana de celebrarem a
festa dos 45 anos do seu casamento. Haigh filma com uma serenidade e uma
elegância que quase passam despercebidas, como se fosse fácil, mas não é; há um
perfeito sentido de mise en scène, ao
qual ajuda, é certo, a experiência de Rampling e Courtenay (que, segundo
consta, apenas se reuniram no dia anterior às filmagens para ler o argumento),
mas a qual não seria suficiente para filmar, como Haigh o faz, por exemplo, Kate
a ver os slides no sótão – um grande momento de cinema em que os fantasmas vêm ao de cima, no escuro, por força
do medium fotográfico (como o
cinematográfico), espécie de projector místico do passado enquanto
matéria semi-adormecida, imprevisível,
capaz de ressuscitar questões (e pessoas) pretensamente enterradas (o problema é
também esse: Katya nunca foi enterrada, literal e metaforicamente). Momento
em que imagem (da desaparecida Katya) e som (do vento e da água das paisagens
onde se vê Katya, elementos que Haighes “cola” ao filme e à imaginação
auto-flageladora de Kate), na sua extrema sensorialidade, abanarão os sentidos
(precisamente) de Kate, a partir daí definitivamente desorientada. Tanto ou
mais que o marido, que entra numa espécie de depressão “desinteressada” e
unicamente centrada em procurar “macacos”… no sótão (nem de propósito). Naquele
que é, outrossim, um estudo sobre o modo diverso como os homens e as mulheres
lidam com os afectos (e quanta razão tem a amiga de Kate quando lhe diz que os
homens choram sempre nos grandes momentos, mesmo os mais durões), Haigh
contrapõe todo este caos privado da intimidade à normalidade que o casal aparenta
em público. O que, além de honesto (a vida não é assim?), deixa, na última e
fabulosa cena, Kate e o próprio filme em suspenso (ou será que não? aquele braço
que tomba, revoltado; o “Go now” dos The Moody Blues que se ouvira um pouco
antes…), um declarado open ending que
subtrai ao espectador o poder de julgar seja quem for (até porque, no final das
contas, o que se passou entre Geoff e Katya aconteceu antes de Kate o conhecer,
não havendo, por isso, sequer qualquer “infidelidade” em equação…). Ao
contrário daquilo que tantas vezes se diz, o passado não é passado – sobretudo quando o ciúme é a pá utilizada para o
desenterrar.
sábado, 23 de janeiro de 2016
Malibu
[Fortemente habilitado a ser o álbum de hip-hop do ano, coisa que a crítica e imprensa em geral obviamente não reconhecerão, forçadas que estão a acompanhar os sound bites, por mais ocos e desinteressantes que sejam (os pares de Adidas que vendi, os óculos de sol que a minha mulher se dá ao luxo de perder, etc.), de Kanye West, Pusha T e afins (atenção: Kanye West é e será sempre um dos meu rappers preferidos por tudo o que fez até 2010 e por algumas, pouquíssimas, coisas depois disso)]
segunda-feira, 18 de janeiro de 2016
o homem da farmácia
O ponto alto do dia do homem da farmácia dá-se pelas duas e dez, duas e um quarto da tarde. Almoça rápido num dos cafés das redondezas, um olho no prato (bitoque, escalopes, filetes, não é muito exigente) e outro na televisão, às vezes no Jornal de Notícias gasto e com as palavras cruzadas já preenchidas aberto em cima da mesa (lamenta-se sempre interiormente pelo facto de ser o Jornal de Notícias o único que existe, até preferia as crónicas das últimas páginas da Bola). Depois do café, paga a correr, pronto, o almoço já está, vamos lá, agora só tenho que abrir a farmácia às duas e meia, quanto tempo tenho?, ah, vinte minutos, sim senhor, vamos lá. Dirige-se para o carro, que estacionou de manhã perto da farmácia. Liga o rádio, 92.5 onde estás tu, aqui, isso, pronto. Abre ligeiramente as duas janelas da frente, uma nesga de cada uma chega, o que importa é que estejam abertas faça chuva ou faça sol. Abre o porta de luvas e tira-o de lá. Faz a cadeira deslizar um pouco para trás, recosta-se para encontrar o ponto de conforto exacto que conhece de todos os dias.
É neste momento que eu invariavelmente passo pelo carro, do lado do passeio, e o olho de livro na mão, compenetrado, raramente desviando o olhar, porque a curiosidade está toda dirrecionada para as linhas defronte. Invejo-o, inveja boa, partilho o prazer dele naqueles breves segundos e penso que quero que ele leia por muitos mais anos no intervalo do almoço.
domingo, 17 de janeiro de 2016
fases da lua (2)
Há tempos, falei aqui desta maravilhosa prenda que recebi no Natal passado. O projecto definitivo foi agora lançado, em formato mixtape, com o título Fases da lua. Trabalho amador, claro (os instrumentais são pedidos de emprestado a alguns dos meus produtores preferidos: Exile, J Dilla, etc.), com todos os defeitos inerentes a essa circunstância, mas a transbordar de amor e solidariedade. 18 aninhos do meu irmão aqui vertidos, 18 anos que acompanhei praticamente todos os dias, no quarto ao lado, com muitas alegrias e zangas pelo meio. 18 anos durante os quais, entre outras coisas, lhe passei música, hip-hop em grande parte, o mesmo que ele agora "devolve" neste projecto, o qual, se é certo que dele sempre me orgulharia em qualquer circunstância, ainda mais assim é pelo facto de, sendo dez anos mais velho que ele, as letras me tocarem - e, digo-lo com sinceridade, não apenas por serem dele, mas pela identificação com as preocupações, os receios, enfim, com as mesmas merdas que vivi nos meus 18 anos, se bem que algumas delas nunca mais nos abandonem. Essa é a parte que ele ainda não sabe: as fases da lua não terminaram, não fecharam o círculo, repetir-se-ão, ciclicamente. "Porquê que tudo o que é belo, é belo demais? Porquê que amo sempre demais?"
O projecto integral (8 faixas, letras na descrição) pode ser ouvido aqui.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2016
It was one of those great spring days, it was Sunday
"It
was one of those great spring days, it was Sunday, and you knew summer would be
coming soon. And I remember that morning Dorrie and I had gone for a walk in
the park and come back to the apartment. We were just sort of sitting around
and I put on a record of Louie Armstrong which was music I grew up with and it
was very, very pretty, and I happened to glance over and I saw Dorrie sitting
there. And I remember thinking to myself how terrific she was and how much I
loved her. And I don't know, I guess it was a combination of everything, the
sound of the music, and the breeze, and how beautiful Dorrie looked to me and
for one brief moment everything just seemed to come together perfectly and I
felt happy, almost indestructible in a way. It's funny, that simple little
moment of contact moved me in a very, very profound way".
quarta-feira, 13 de janeiro de 2016
One step at a time, one punch at a time, one round at a time
"(...) há a história de uma cidade, Philadelphia, ou Philly, como dizem os residentes. Nunca ostentatória ou forçada, é uma perspectiva das pequenas aventuras quotidianas, como a já referida cena dos cozinhados, na degradação da “zona perigosa” da cidade, nos planos do já mítico caminho de ferro que sobrevoa o ginásio do Mickey, ou na subida das escadas do museu que já é lenda da “história do cinema”. O esplendoroso plano final presta melhor homenagem a uma cidade do que mil cartas de amor. Não há a sujidade operária do primeiro filme, mas ainda assim é das coisas mais próximas de que hoje em dia estaremos de um “cinema de rua” na fábrica de Hollywood.
Pode-se dizer e escrever que Creed segue uma fórmula, que é previsível, que segue por caminhos seguros do reconhecimento de quem já viu os outros filmes. É tudo verdade, mas também há, como sempre houve, personagens com o coração na boca, recusa de cinismos, e, maior que tudo, um tremendo arco emocional, simbolizado num raccord de quarenta anos entre um Stallone a correr fulgurantemente pelas escadas e o mesmo a precisar de ajuda para o fazer, o fim já próximo. (...)".
No À pala de Walsh.
segunda-feira, 11 de janeiro de 2016
terça-feira, 5 de janeiro de 2016
sábado, 2 de janeiro de 2016
2015 - Música
No primeiro dia do ano, o Rimas e Batidas publicou o meu balanço de 2015, com a feliz particularidade de a proposta que me foi feita ter sido no sentido de abordar a música que ouvi em 2015 (e não "os melhores" de 2015), o que permite que as referências incluam gente de tempos e eras muito distintas, bem como o cruzamento com bandas sonoras de filmes. Mais "contemporaneamente", digamos assim, além de me interrogar sobre o fenómeno To Pimp a Butterfly, deixo elogios a The Good Fight (Oddisee), The Free Food Tape (Slow J; não se deixem enganar, é produto nacional), Sou Quem Sou (SP Deville), Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa (Emicida), entre outros.
Para ler aqui (clicar). Bom ano!
É neste estado das coisas que se pode compreender – e problematizar – o fenómeno To Pimp a Butterfly, autêntica ilustração de como a peer pressure é geradora de unanimismos pouco ou nada genuínos: de repente, o álbum de Kendrick Lamar – um tratado da música negra, uma magnífica obra que ressoará nas próximas décadas, disso não duvido – aparece em primeiro lugar em tudo o que são listas dos melhores álbuns do ano. Coisa da máxima ironia: o politicamente correcto a “obrigar” à eleição de um álbum de hip hop, género politicamente incorrecto por natureza (por todos os motivos, bons e maus), como “o melhor do ano”. Mas a questão também se coloca a um outro nível: será verosímil que, para todas essas publicações e mais algumas, o álbum de Lamar seja, de facto, o melhor do ano? Bom, possível até poderá ser, mas pouco credível (e, se o for, então é um aborrecimento, porque significaria que gostaríamos todos do mesmo…!), sobretudo quando tal escolha é desacompanhada de exercícios críticos informados que a sustentem (ou, então, que se limitam a reproduzir frases de efeito de outras publicações).
[Excerto]
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