Uma vez que me vi forçado a reduzir substancialmente os textos originais por razões de dimensionamento, deixo aqui agora as versões originais - e mais extensas - dos mesmos.
Bons e filmes e boas leituras.
Aliados
(2016),
Robert Zemeckis ★★★
Sem
fazer muito ruído, Zemeckis fechou 2016 com um belo filme que passou,
provavelmente, despercebido a muita gente (ou não, atendendo ao chamariz
“Pitt-Cotillard” e aos boatos extra-conjugais que rodearam a rodagem do filme).
Zemeckis, conhecido por filmes tão diversos como a saga Regresso ao Futuro,
Quem Tramou Roger
Rabbit? ou Forrest
Gump, tem conseguido, a espaços, ir fazendo coisas interessantes dentro da
máquina de Hollywood e este seu último filme, sobre uma relação de amor entre
espiões durante a ocupação nazi em França, é exemplo disso mesmo.
Aliás,
os primeiros planos no deserto são toda uma extravagância para um filme
produzido pela Paramount: silenciosos, demorados, “vazios”, planos onde
aparentemente “não acontece nada” mas nos quais, na verdade, se joga “tudo”
sobre a personagem de Pitt, Max, um homem profundamente solitário, triste (a
irmã diz que já não o via alegre há anos) e aparentemente desinteressante (o
“porquê” da sua soturnidade não o sabemos e o filme só ganha pontos em manter o
véu sobre esse passado). A elegância formal e classicista de Zemeckis nos
planos e nos enquadramentos, juntamente com – outra raridade de ver num filme
saído de uma major
– o tempo que Zemeckis dedica a cada cena, permitem ao espectador ver
verdadeiramente o que tem à sua frente, observar, com vagar, as personagens e
os ambientes em que elas se movem. E é essa mesma “longa duração” que deixa as
próprias personagens respirarem, ganharem espessura, enfim, serem… personagens.
Tudo isto tem um nome, um nome esquecido quase em absoluto na linha de montagem
actual de Hollywood: cinema, uma coisa que, nessa mesma Hollywood das décadas
de 30, 40, 50, efectivamente existia com outros realizadores, ideias e actores
(apesar de todos os condicionalismos já então vigentes, desde os mercantis aos
legais, i.e., os do Código Hays).
Não
menos “extravagante” é, por exemplo, a cena da festa em casa dos Vatan, seguida
dos magníficos (e silenciosos, novamente) planos dos convivas a observarem o
céu de Londres cruzado pelas bombas nazis, como se de um “fogo-de-artifício”
perverso se tratasse, assim se reconstituindo aquele ambiente dreamy de
“diversão em tempos de guerra” que sintetiza o trágico da época. Voltando a
Max, é a alegria que a entrada de Marianne (enorme presença de Cotillard, tanto
ou mais que a sua extraordinária beleza) na sua vida lhe traz que explica o
modo como, perto do final, se recusa a ver a verdade dos factos, já depois de
voar até ao outro lado da Mancha, de atravessar “rios e mares” para tirar a
prova dos nove (solução narrativa muito bem conseguida).
E é neste ponto que o drama está trabalhado a um nível superlativo (virtude do
argumento): nada, absolutamente nada nessa “verdade dos factos” invalida a
existência de um amor genuíno daquela mulher por aquele homem. Daí o tiro,
carregado de culpa, naquela magnífica cena final que cita o Casablanca de
Michael Curtiz (o aeroporto, os carros, a chuva, o fog), embora, a
bem dizer, Zemeckis passe o filme a emular Curtiz, com a diferença de que,
aqui, o percurso seguido é o inverso: começamos em Casablanca e depois vamos
para Londres (o lema é, portanto, We will always have…
Casablanca).
De resto, esse final confirma, de modo paradigmático, o desvio à lógica de
estúdio, um sad
end que, além de magnificamente filmado, é a solução narrativa mais honesta
e credível para o filme no seu conjunto.
O
Vendedor (2016), Asghar Farhadi ★★★
A
sensação com que se fica do último filme do iraniano é a mesma transmitida por O Exame, de
Cristian Mungiu: dois realizadores que atingiram o controlo absoluto do seu
cinema, da sua “máquina” e respectivas engenharias (especialmente as
narrativas), mas que, por isso mesmo, parecem ter cristalizado, encalhado nesse
“estado de graça”. Claro que a observação tem o seu quê de injusto, pois fosse
algum destes filmes o primeiro das respectivas filmografias e a apreciação
seria inevitavelmente outra, mas o certo é que as propostas artísticas também
se fazem (e crescem) através das “mudanças de velocidade” que os seus autores
lhes imprimem.
Tal
como nos últimos filmes de Farhadi (o divórcio em Uma Separação; a
ameaça do regresso do ex-marido em O Passado), o
olhar incide sobre a dinâmica familiar (um casal, novamente) e as repercussões
de um concreto acontecimento nos seus afectos e (des)equilíbrios (o passado,
uma vez mais, como líquido viscoso sempre a “contaminar” o presente),
concluindo-se o filme – naquela que é outra marca registada de Farhadi – num
grande “final aberto” em que as certezas sobre os caminhos que as personagens
tomarão a partir dali pura e simplesmente não existem. É como se o iraniano,
depois de cerzir, meticulosa e “detectivescamente”, o novelo narrativo, depois
de juntar, enfim, as peças todas do puzzle (embora nunca as encaixando
totalmente, i.e., há sempre actos e motivações que ficam por esclarecer), as
atirasse ao ar e incitasse o espectador a tentar saber o que fazer com elas
dali em diante.
A
grande novidade aqui é o dispositivo teatral (a peça Death of a Salesman,
de Arthur Miller, que o casal, ambos actores, está a estrear) que o iraniano
“põe em cena” paralelamente com a narrativa, numa tentativa – já muito vista e
à qual, verdade seja dita, Farhadi não acrescenta nada de novo – de ilustrar
como arte e vida, ficção e realidade, se imitam mutuamente, nomeadamente, através
do modo como as emoções da “vida real” começam a prolongar-se, a “estalar” em
palco e a forçar os actores à improvisação. Enfim, a velha ideia de que viver
é, por definição, “improvisar” (ainda o ano passado se viu isto feito, com mais
brilho, em As
Nuvens de Sils Maria de Assayas).
O
mais interessante do filme ainda está na metáfora – que, ainda assim, podia
estar trabalhada, reconheça-se, com outra subtileza – sobre um mundo (o Irão,
social e moralmente falando) e um casal prestes a desabar, algo que desde a
primeira cena, em que um prédio é evacuado sob ameaça de derrocada, é
explorado. Repare-se, então, no percurso trilhado: desse apartamento prestes a
ruir, o casal muda-se para outro que, parecendo “estável” ou “sólido”, se
revelará definitivamente “esburacado”; tudo para, no final, se voltar, pela
obstinação vingativa do marido (por oposição ao perdão manifestado pela mulher)
ao apartamento inicial, no qual as marcas da derrocada iminente estão mais
visíveis do que nunca, autênticas “fracturas expostas” a ameaçar a unidade
daquele casal. E, então, a dúvida: cicatrizarão?
Na
Via Láctea (2016), Emir Kusturica ★★★
Não
será certamente o Kusturica dos tempos – ou do nível – de Underground e Gato Preto, Gato
Branco, mas é, indubitavelmente, um belo filme aquele que marca o seu
regresso após alguns filmes menores. A frase com que o sérvio abre o filme (“Based on three true
stories and many fantasies”) é todo um statement sobre o
filme e a sua própria obra, uma amálgama de realismo, fantasia, bizarria,
cacofonia e humor, sendo na recuperação dessa marca que o cineasta transmite
novamente a sua visão da paisagem dos Balcãs e suas estórias.
Todavia, pelo seu carácter fortemente impressivo, essa mesma marca foi sempre um
pau de dois bicos, na medida em que não é fácil conservar a genuinidade dos
ambientes “kusturicanianos” de filme para filme, e as cenas festivas delirantes
que aqui vemos, por exemplo, acabam invariavelmente por perder, a pretexto de
uma certa artificialidade, para as que já conhecemos dos seus trabalhos
anteriores. Pelo meio das bombas e das tréguas, sobressai uma enternecedora
história de amor entre um homem tristíssimo (interpretado pelo próprio
Kusturica) e uma mulher fugida e desterrada (Monica Belluci), os quais, de
obstáculo em obstáculo, e ajudados pela natureza e pelos animais (o filme grita
“fábula” por todos os cantos), vão, enfim, tentar ser felizes.
O
tom caricatural, como se todo o filme fosse uma “brincadeira”, é, obviamente,
propositado, espécie de “filme de aventuras” em que o (anti-)herói impede a
todo o custo os vilões de roubarem a sua donzela, algo que se, por vezes, deixa
o filme no limite do risível, é o que lhe dá a sua graça e candura.