terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Artes Entre As Letras #6

No último número do Artes Entre As Letras de 2015, escrevo sobre aquele que foi o filme que mais me encantou em 2015: Montanha, de João Salaviza. Os elogios, já advinharam, são muitos (mas justos, estou convicto, e o tempo tratará de o provar). A pequena divergência do elenco dos filmes que escolho por comparação com a selecção que fiz para o À pala de Walsh justifica-se pelo facto de, neste último, se ter definido a trilogia de Miguel Gomes como elegível apenas na sua globalidade.



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Montanha (2015), João Salaviza *****
Não é apenas a chancela de um-dos-melhores-filmes-do-ano que Montanha, a primeira longa-metragem de Salaviza, partilha com Minha Mãe, de Moretti; neste último, Margherita Buy, a realizadora em crise, descontente com os figurantes contratados mas informada pelo produtor de que eles possuem efectivamente o aspecto dos operários actuais, responde “mas este é o meu filme!”, outra forma de afirmar que a arte é também isso, a reinvenção pessoal da realidade.
Ora, na estrondosa primeira longa-metragem de Salaviza, os adolescentes também não usam telemóveis, iPads, portáteis e afins, e, se isso parecer implausível a alguém, a resposta é a mesma: este é o filme de Salaviza, dono de um cinema profundamente autoral no tratamento dos temas, no manejamento da câmara, na sua impressionante força plástica. Pelo olhar documental sobre os Olivais, Salaviza confessou-se um nostálgico da vida de bairro, mas a ausência da tecnologia faz dele igualmente um nostálgico de um tempo pré-digital em que os miúdos, como os do filme, não tinham senão – e já era imenso – os amigos, os prédios e as ruas como possibilidades de brincadeira e diversão, muito ironicamente, como possibilidades, afinal, de comunicação, da mais genuína e não a das “redes sociais”. Neste sentido, neste assumido “banimento” da tecnologia, Montanha é um filme utópico, porque empenhado em resgatar, em 2015, um tempo e um modo de vida que, para o bem e para o mal, definitivamente já não existem, não sendo por acaso que, numa das raras vezes em que a tecnologia faz uma aparição (o telefone), seja para comunicar uma morte. Sim, a tecnologia também “mata” (e, quando não mata, aprisiona, como a pulseira electrónica em Arena, a curta-metragem que valeu a Palme d’Or a Salaviza em Cannes 2009): mata a atenção, a concentração, a simples predisposição para, por exemplo, contemplar demoradamente o horizonte da cidade em silêncio, como o fazem David e Paulinha num magnífico plano.
A adolescência e a curta-metragem eram, até esta parte (além de Arena, o cineasta conta com as curtas Cerro Negro e Rafa no currículo, esta última Urso de Ouro na Berlinale 2012), o território por excelência de Salaviza, enquanto etapa nebulosa do crescimento connosco próprios e com os outros; Montanha é, no formato longa, o culminar desse percurso, aqui através de um miúdo que, com a mãe momentaneamente presente e o avô no hospital em estado muito débil, passa os cálidos dias do seu Verão à deriva pelas ruas da zona. Num filme a “toda a altura”, com as personagens frequentemente enquadradas (e que magníficos enquadramentos…!) no topo de altos edifícios, os adultos estão praticamente ausentes do filme, donde sai reforçada a ideia de um crescimento forçado destes miúdos (como se, no plano de David e Rafa a andar de mota, este último estivesse a ocupar o lugar maternal de Anna Magnani no plano muito semelhante de Mamma Roma, de Pasolini), de quem podemos dizer, com muita propriedade, não terem “medo das alturas”. Nem das alturas nem do escuro, habitando frequentemente as sombras, a penumbra, os espaços e os tempos mortos; pelo contrário, há uma atracção – uma “vertigem” (diferente de “ter vertigens”, coisa que estes miúdos, insista-se, não têm…) – quase secreta, rebelde, por esses elementos (as alturas e o escuro), à qual as histórias de suicídio que os miúdos contam só acrescentam uma certa pulsão destruidora, por sua vez latente ao longo de todo o filme na atracção (mais uma) pelo fogo e concretizada na gloriosa combustão da mota roubada.
Montanha condensa, na forma e na substância, o cinema de Salaviza até esta parte, todo ele de uma escuridão perfeitamente controlada, perfeitamente bela, perfeitamente pictórica (e também cinematográfica, claro: o plano de David à porta do prédio de Paulinha, à noite, é uma lição sobre expressionismo alemão). A outro nível, e em tempos em que o retrato dos adolescentes impingido pelos formatos telenovelescos e afins é de uma estupidez e pobreza confrangedoras, importa sublinhar a justeza do olhar de Salaviza e, até, o respeito pelos miúdos que filma (em David Mourato pode-se ter ganho um enorme actor, quiçá um novo Pedro Hestnes), de que as duas “curtes” de David e Paulinha são exemplo paradigmáticos, filmadas como só os maiores cineastas sabem filmar a intimidade, o corpo, a descoberta. Montanha é, quanto a nós, o filme do ano e Salaviza o mais fascinante realizador português em actividade, a quem auguramos coisas grandiosas. Aguardemos.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

fases da lua




Nunca imaginei que a melhor prenda de Natal me pudesse vir parar às mãos (ou ao coração) com a idade que tenho hoje. Mas veio - e foi do meu querido irmão. Chama-se "Retrospectiva" e é a primeira canção de uma mixtape intitulada "Fases da lua" (a sair nas próximas semanas), a primeira coisa que ele põe cá fora. O refrão é da Maria Branco. Orgulho imenso, yo!

domingo, 27 de dezembro de 2015

2015 - Filmes



Os melhores filmes de 2015 para a equipa do À pala de Walsh já são conhecidos - para ler ali (clicar). As minhas preferências abaixo. Na próxima semana, sai o número do Artes Entre As Letras no qual escrevo sobre Montanha.

  1. Montanha (2015) de João Salaviza
  2. Clouds of Sils Maria (As Nuvens de Sils Maria, 2015) de Olivier Assayas
  3. Mia madre (Minha Mãe, 2015) de Nanni Moretti
  4. Turist (Força Maior, 2014) de Ruben Östlund ex aequo Leviafan (Leviatã, 2014) de Andrey Zvyagintsev
  5. Eden (Éden, 2014) de Mia Hansen-Løve
  6. Fehér isten (Deus Branco, 2014) de Kornél Mundruczó
  7. Phoenix (2014) de Christian Petzold
  8. Bande de filles (Bando de Raparigas, 2014) de Céline Sciamma
  9. Taxi (Táxi de Jafar Panahi, 2015) de Jafar Panahi ex aequo The Look of Silence (O Olhar do Silêncio, 2014) de Joshua Oppenheimer
  10. João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas Que Eu Amei de Manuel Mozos ex aequo Timbuktu de Abderrahmane Sissako

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

por debaixo da máscara


                                                                         (Dekalog, sześć, 1989, Krzysztof Kieślowski)

"Kieślowski (...) complementa a proibição de descrever os momentos íntimos da vida «real» precisamente com a ficção, com imagens «falsas» - nós não podemos mostrar «sexo real» ou momentos emocionais íntimos, mas os actores podem perfeitamente simulá-los, mesmo de um modo muito «realista» (...). A tese de Kieślowski será então, simplesmente, a de que o uso de uma máscara deve servir como uma espécie de escudo protector, como o sinal de respeito por aquilo que deve permanecer escondido? Ou então ele está perfeitamente consciente da dialéctica de «usar uma máscara»: a nossa identidade social, a pessoa que assumimos ser nas nossas trocas intersubjectivas, é já «uma máscara», envolve já o recalcamento dos nossos impulsos inadmissíveis, e é precisamente nas situações em que se trata «apenas de um jogo», em que as regras por que se pautam as nossas trocas na «vida real» se encontram temporariamente suspensas, que nos podemos permitir exibir estas atitudes recalcadas.
(...)
Como prova desta dimensão, devemos evocar o sentimento estranho que sentimos quando vemos os documentários de Kieślowskii: é como se as pessoas (da vida real) desempenhassem literalmente o seu próprio papel (na vida real), criando uma estranha sobreposição de documentário e ficção, na qual uma pessoa «se interpreta a si mesma» (...). Quando em Night Porter's Point of View (1977), o porteiro de uma fábrica (...) insiste que «as regras são mais importantes do que as pessoas», não exibe imediatamente a sua postura íntima; é que, numa atitude reflexa, ele «desempenha o papel de si mesmo» (...). Foi para evitar este impasse que Kieślowski teve de se mudar para a ficção. Com efeito, quando filmamos cenas da «vida real» num documentário, temos pessoas a representar o seu próprio papel (...), pelo que o único modo de descrever as pessoas debaixo da sua máscara protectora é, paradoxalmente, fazê-las desempenhar directamente um papel, ou seja, passar à ficção. A ficção é mais real do que a realidade social de representar papéis".

Slavoj Žižek, Lacrimae Rerum, Orfeu Nefro, 2013, pp. 11-13.


(Dekalog, siedem, 1989, Krzystof Kieslowski)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

as circunstâncias com que nos cosemos

Há tempos, lia aqui, a propósito do cinema de Michael Haneke, que o seu ponto de vista era o de que "a fron­teira entre civi­li­za­ção e bar­bá­rie depende, ape­nas e só, das circunstâncias", e que "Essas cir­cuns­tân­cias não são excep­ci­o­nais. Pelo con­trá­rio. Nas suas diver­sas modu­la­ções, sur­gem com frequên­cia no quotidiano". Vale a pena ler o resto.
 
Há dias, confortavelmente sentado no sofá depois do almoço, via o telejornal na RTP. Pelo meio da torrente noticiosa, é exibida uma peça, que só apanhei já a meio. Era sobre um grupo de mulheres que, em vésperas de Natal e num acto de solidariedade, se havia deslocado a um hospital frequentado por doentes em estado muito débil (terminal, em alguns casos) e lhes  proporcionavam, por umas horas, uma tarde alternativa com danças, teatros, etc.. Vi as imagens: as mulheres faziam tudo aquilo muito genuinamente, não apenas com o sorriso próprio de quem tem por missão agradar (que também era o caso), mas, por vezes, até com o rosto sério, compenetrado, prova do esforço em fazer bem o que se praticou anteriormente, em fazer bem aquilo que se pensou para o público, em, afinal, fazer bem ao público muito especial que está na assistência. Passado um bocado, a repórter entrevista algumas dessas mulheres. Eram presidiárias de longa data, mulheres com penas de quinze, vinte anos, certamente por crimes hediondos, e que, naquela tarde, gozavam de umas horas fora dos muros da cadeia. Vi as imagens: rostos iguais aos de toda a gente, as mesmas inflexões nas vozes, os mesmos gesticulares, os mesmos embaraços momentâneos. O que lhes aconteceu? O que fizeram? Porquê que o fizeram? Porquê que sou eu que as estou a ver na televisão e não elas a mim? Felizmente, a repórter não fez estas perguntas, pudor que, quero acreditar, tem latente essa consciência de que, de facto, as circunstâncias, as terríveis circunstâncias que não escolhemos ["não se escolhem, mas constroem-se", dirão aqueles que esquecem que o simples sítio onde nascemos pode bem ser uma sina e implicar um esforço de orientação na vida que muito boa gente nunca seria capaz de o fazer, não porque seja displicente (como dizem dos visados), mas simplesmente porque é um esforço demasiado hercúleo], podem deitar - e ditar - tudo a perder.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

bailarina em caixa de música




(Três Cores: Branco, 1994, Krzysztof Kieslowsli)

É bem mais do que o sentimento de vingança aquilo que move Karol na última parte de Branco, nesse sórdido ensaio da sua própria morte. Mais do que vingança, mais do que um "ajuste de contas" - mas não menos doentio (o olhar sick acima de Karol é isso mesmo: um misto de inocência e obsessão) -, é, sim, o desejo de "aprisionar" para sempre Dominique junto de si, de a encarcerar, qual Rapunzel, nessa prisão-castelo da qual ela jamais sairá e ao qual ele poderá dirigir-se sempre que quiser para a contemplar mais um pouco. Com calma, não mais com ansiedade, sem que ela possa fazer algo contra isso (num voyeurismo caríssimo a todo o cinema de Kieslowski). Vendo bem, este plano de Karol, finalmente em paz consigo mesmo (as lágrimas, não sendo de tristeza, também não são de alegria, antes de paz e redenção), é o plano inverso daquele em que ele, indigente e sem-abrigo em Paris, olhava angustiadamente para o prédio de Dominique e o indicava a Mikolaj, desse mesmo em que o vulto de Dominique abraçado a outro homem se insinuava terrivelmente.
 
Pois bem. 
 
Isolada num país que não é o seu, no qual não compreende ninguém e não se consegue fazer compreender por causa da língua (o mesmo obstáculo que Karol havia enfrentado no julgamento em França na abertura do filme), Dominique não terá outra hipótese senão a de se dirigir todos os dias, ritualisticamente, à janela e deixar-se observar por Karol. É uma "menina à janela" à força, e Karol o jogral silente que, mesmo ouvindo-a dizer que o ama, jamais a libertará, porque, no fim de contas, ele prefere-a assim: enjaulada só para si, quieta, sem poder ser a mulher independente e desprendida que o humilhou em Paris. Por isso, Branco, apesar do subtítulo ("Igualdade"),  é um filme ainda sobre a Liberdade (a de Azul): para Karol, Dominique só pode - podia... porque agora é tarde - ser livre estando-com-ele, só pode aspirar à liberdade na-sua-companhia. Tudo que seja inferior a isso não lhe interessa e desespera-o. Por isso, ou para isso, ele prefere vê-la do pátio da prisão, como uma bailarina na caixa de música, dançando lentamente só para ele.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Walsh #38 Crítica - "Ninotchka"



A minha última crítica deste ano para o À pala de Walsh é sobre Ninotchka (1939), uma deliciosa comédia pré-guerra fria de Lubitsch com a adorável Greta Garbo. O filme passou ontem no Cineclube de Caminha e passa hoje na Cinemateca. Para ler aqui (clicar)

"(...) obviamente, um filme como este, que brinca e se diverte com coisas sérias (numerosas e deliciosas piadas sobre os planos quinquenais, as purgas estalinistas, a censura, etc.), nunca poderia ser feito na URSS (tendo inclusivamente a sua distribuição sido proibida por Moscovo), mesmo se os “capitalistas” são igualmente alvo do lápis univocamente caricatural de Lubitsch: fúteis, snobes,  gananciosos, parasitários, aldrabões (pelo contrário, os soviéticos, especialmente Ninotchka, são sempre francos nas suas intenções). Ou seja, bem vistas as coisas, ninguém sai bem na fotografia e isso só demonstra, uma vez mais, o lado desprendido e nada self-counsciouness do filme, não “alinhando” com ninguém e gozando com todos, ao mesmo tempo que os compreende e como que os desculpa pelas suas idiossincrasias".

[Excerto]

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015




"Cannonball", álbum Illa J (2015). Illa J.

Convenhamos: depois do Yancey Boys (2008, um dos melhores álbuns desse ano), era praticamente impossível fazer algo ao mesmo nível. Illa J (2015) confirma essa evidência, mas não deixa, ainda assim, de ser um muito estimável disco do mano mais novo do grande J Dilla.
São oito da noite e passo pela rotunda. Já é escuro, há poucas pessoas na rua e, apesar de estarmos em Dezembro, é como se não estivéssemos, não se vêem cachecóis nem sobretudos. Embora o meu trajecto seja outro, faço a rotunda toda, contorno-a toda, sempre o mais longe possível do aparato montado ao centro, que compõe um belo e melancólico quadro: lanchonetes, barracas de rifas, matrecos, carrinhos de choque, neons, uma pista de gelo, uma enorme rampa de gelo com uma frase apelativa mal escrita para os miúdos. Ainda é cedo e não há ninguém para a festa. Apenas manchas de luz vermelhas que irrompem, quase ocultamente, pelas árvores e os jardins. Vindo de não sei onde, ouve-se o George Michael a cantar "Last Christmas, I gave you my heart...". Mas não há ninguém para a cantar por agora e, por isso, as emoções dos casais que, mais logo, por aqui andarão de mão dada e comentarão como Dezembro tem sido um mês de temperaturas atípicas vão aguardar mais umas horas. Até lá, podemos continuar a rondar a rotunda, uma e outra vez.




(Dekalog, sześć, 1989, Krzysztof Kieślowski)

Chaplin

Tudo a ver o Chaplin. Os adultos riem-se, dão gargalhadas, os miúdos muito sérios, compenetrados.

firestarter

Eu estava a equipar-me nas calmas, tinha jogo às nove. O telefone toca, do outro lado tudo muito ofegante, preciso de falar contigo, estou a passar aqui perto e tenho mesmo que passar por tua causa. Sim, está bem, disse, e fiquei preocupado. Cinco minutos depois e está ele a subir as escadas do prédio a correr, entra-me em casa esbaforido. Xico! Xico! Fui ver a dupla vida da Verónica! Fogo, Xico! Tinha que vir falar contigo! Fogo!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Walsh #37 Jukebox/The Last Picture Show (Sopa de Planos)



A última Sopa de Planos é sobre jukebox e o meu plano de um dos filmes da minha vida (escolhi-o, em 2010, para a programação do velhinho Cineclube FDUP...). Para ler a Sopa toda, consultar aqui.
 
 
The Last Picture Show (A Última Sessão, 1971) é filme de uma coralidade imensa e no qual a música utilizada – a country e o folk americanos – serve de comentário permanente às cenas, umas vezes de forma explícita, outras de forma mais subtil. Ouvimos, por exemplo, “Cold, Cold Heart”, de Hank Williams, perfeitamente em linha com os corações dos homens e mulheres, velhos e novos, que habitam o filme de Bogdanovich, todos carentes e solitários, desesperadamente desejosos de uma chama que os aqueça mas já quase sem esperança (mesmo os corações dos mais jovens, como o de Sonny, numa contradição tão melancólica quanto todo o filme). “Cold”, também, porque, lá fora, o frio é muito, o vento não pára de assobiar e o calor da lareira não chega, é preciso outro tipo de calor (ou de fogo). O plano acima pertence a uma cena em que duas dessas lost souls se encontram e deixam, por uns instantes, de estar tão sozinhos, porque é irredutivelmente na comunicação, da mais profunda à mais corriqueira, que nos sentimos próximos uns dos outros, logo mais quentes, mais aconchegados. Enquanto come o prato que Genevieve lhe preparou, Sonny olha-a de alto a baixo (e… “mastiga-a” de alto a baixo), cheio de desejo (pelo seu corpo e pelo mito da “mulher mais velha” que ela carrega), e ela, com gosto, apercebendo-se disso mesmo, “apanha-o” olhando-o diretamente nos olhos (os olhos envergonhados de Sonny que fogem para a jukebox no plano acima), como quem diz “Hey Good Lookin’”, o título da música do mesmo Hank Williams que a jukebox insinua no ar. “(…) what ya got cookin’? / How’s about cooking somethin’ up with me?”, poderia ser a resposta musical-gastronómica de Sonny.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Volta, meu amor


 
(Come Back, Africa, 1959, Lionel Rogosin)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015


Pensando bem, talvez não haja melhor ilustrativo do modo como a crise de Margherita é a tal ponto profunda que a faz desacreditar (ou, pelo menos, duvidar) do seu "cinema social" do que a tal frase sobre os figurantes contratados para operários. Dizendo "este é o meu filme", ou seja, que pode e quer reiventar a realidade, que, mais do que isso, pode e quer criar uma ou outra realidade, Margherita solta-se, precisamente, definitivamente, dos espartilhos do realismo.

domingo, 6 de dezembro de 2015

espelho meu, espelho meu



(Ninotchka, 1939, Ernst Lubitsch)

sábado, 5 de dezembro de 2015




(Anna Kashfi e Marlon Brando à saida do tribunal, anos 60)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015




(Os Amores de Uma Loira, 1965, Milos Forman)
Vamos perdendo-nos durante a vida. Uns dos outros, vamos perdendo-nos diariamente. Por isto, por aquilo, porque sim, porque não, porque, enfim, já passou tanto tempo que agora é tarde de mais ou já não é suposto reencontrarmo-nos, afeiçoarmo-nos de novo, pormos uma pedra no assunto. Chatices, merdas, aborrecimentos, mal entendidos. O que é que interessa? O que é que interessa se temos saudades dos outros e o tempo está contra nós? Mais tarde, a velhice cobrará toda essa estupidez. Até lá, maus alunos que somos, vamos perdendo-nos uns dos outros.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015



(Os Amores de Uma Loira, 1965, Milos Forman)

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

montanha


(Montanha, 2015, João Salaviza)

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

bande de filles

São cinco ou seis adolescentes, saíram da escola para a hora do almoço, sei-o porque andei na mesma escola que elas, mas isso elas não sabem (nem lhes interessa). Estão sentadas numas escadinhas, uns metros depois da saída do supermercado. Comem sandes com o invólucro de plástico ainda por retirar, bebem o sumo de um enorme pacote de litro e meio de marca branca, partilham batatas fritas com voracidade. Vestem roupas de cores e tecidos agressivos, colares grossos pelo pescoço. Uma mão segura na sande enquanto a outra mexe na rede social do telemóvel. Costas curvadas, pernas abertas, despreocupadamente abertas, em postura masculina, quiçá conscientemente. Vão falando, falam alto, e dão gargalhadas. Subo as escadas e passo por elas, que não têm a mínima delicadeza em dar-me espaço para o fazer. Não me importo; aliás, era exactamente isso com que contava e foi por isso que decidi atalhar por aquele caminho, nem era o que me dava mais jeito.

Artes Entre As Letras #5

No número do Artes Entre As Letras que saiu ontem para as bancas, escrevo sobre o Bande de filles (2014, Sciamma) e o Mia Madre (2015, Moretti), dois belos filmes. Como faço menção no final, dedico estas linhas a França, aos franceses e às vítimas dos barbáricos atentados ocorridos a 13 de novembro de 2015, em Paris, por cujas ruas Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg nos fizeram apaixonar para sempre. Contre nous de la tyrannie.


quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Walsh #36 Crítica - "Tenho Vinte Anos"



Este mês, e na sequência de outros filmes soviéticos sobre os quais tenho escrito (este ou aquele), atirei-me ao fabuloso Tenho Vinte Anos (1965), de Marlen Khtusiev. Filme-sonho sobre a URSS do período Khruschchev onde, por um instante, tudo pareceu possível (nomeadamente, a liberdade). O filme passa hoje na Cinemateca, no âmbito do ciclo integral Marlen Khutsiev: Um Segredo do Cinema Moderno.
 
 
Se Mne dvadtsat let ecoa os ares mais respiráveis do pós-estalinismo, tal permite a Khutsiev, de modo ora mais explícito, ora mais subtil, filmar as convulsões internas da URSS a partir do locus que realmente (lhe) interessa: as pessoas. Por isso, se, sobre um filme da propaganda estalinista como Chapaev (Georgi e Sergei Vasilyev, 1934), Marc Ferro escrevia que o mesmo “(…) montre que les héros se trompent, que la spontanéité conduit à des erreurs, que les individus meurent, alors que le parti voit juste, qu’il ne se trompe ni ne morte jamais”, então, o filme de Khutsiev representa, justamente, o triunfo da espontaneidade e dos indivíduos. Ou seja, e talqualmente acontecia com Ballada o soldate de Grigoriy Chukhray (cineasta muito admirado por Khrushchev), este é um filme também “político” no sentido em que, por oposição ao titânico (tirânico) projecto transpersonalista soviético, se afirma como radicalmente personalista, algo detestavelmente “burguês” e “individualista” para as autoridades (como se o personalismo, cristão ou laico, não fosse compatível com a ideia de comunidade e de progresso colectivo).
 
[Excerto]

segunda-feira, 23 de novembro de 2015


 
(More, 1969, Barbet Schroeder)

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

cobardia

A noite já caiu. A luz que o orientará nos minutos seguintes vem do amarelo torrado dos lampiões da rua. Nunca gostei destes lampiões, pensa para si próprio, num raro momento de distracção interior. Quando visitou a terra dos pais, viu alguns lampiões semelhantes. Na altura, disseram-lhe ser do tempo colonial, mas isso agora não interessa. O último carro passou e aproveita a oportunidade para atravessar a rua. O café que lhe indicaram é este. Sim, é este, tinha estas letras e estas cores nas fotografias que viu no computador na noite passada. Ao contrário dos restantes, não chegou a tempo de poder ir ver o alvo ao vivo. Vislumbra algumas, poucas, pessoas na esplanada, mas não consegue distinguir rostos. Melhor assim. Para dentro do café, por enquanto, nada vê. Empunha a metralhadora e começa a disparar, enquanto mantém o passo firme em frente. A esplanada esvazia-se num ápice. Consegue distinguir o ruído dos seus disparos dos outros que se ouvem uns metros mais ao lado. Excelente, eles também já estão cá, pensa, agora com a coragem reforçada. Avança mais decididamente. Com a proximidade do café, sente os primeiros estilhaços no corpo. Algo fica preso na barba. Dispara durante mais quatro, cinco segundos. Agora está mesmo no passeio, em frente à montra do café. Os disparos dos outros já não se ouvem, é o sinal para recolher. Baixa a metralhadora. No interior do café, não vê ninguém. Já devem estar todos mortos. De repente, nota nesta mulher a dois metros de si, de joelhos e mãos na cabeça. Não morreu quando disparei? Porquê, porra? E porquê que não fugiu, então? Bom, disparo agora, então. Empunha novamente a arma ao mesmo tempo que a mulher gira ligeiramente a cabeça e o olha directamente. Corre no rosto dela um medo que ele próprio não se lembra de ter sentido alguma vez na vida, nem mesmo quando andou na guerra contra os infiéis. Ergue ligeiramente a cabeça e olha-a com mais atenção. Baixa a metralhadora e foge. Já vê o carro mais à frente, é uma questão de milésimos de segundo até abrir a porta e sair do local. Sou um cobarde porque não a matei como devia ter feito ou porque matei os outros todos?
 
 
(Mia madre, 2015, Nanni Moretti)

quarta-feira, 18 de novembro de 2015



(Bando de Raparigas, 2014, Céline Sciamma)

circa 1143




"Circa 1143" (não editado, 2015). Baked Donuts.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Valls está rodeado de seguranças e polícias, um círculo de segurança que o acompanha enquanto se acerca do local dos acontecimentos. Um homem desgraçado, aos gritos, anda em parafuso nas suas imediações, tentando dizer algo não se percebe a quem, tentando dirigir-se não se sabe aonde. Consegue chegar mais perto. É a Valls que se dirige. Está a coisa de um metro do círculo de segurança. Ouve-se uma palavra. "Filha". Agora, mais nitidamente, percebem-se outras duas. "A minha filha". Um estremecimento percorre aquele micro-espaço separado do mundo onde apenas existem Valles, os seguranças e o homem. E uma câmara da televisão que filma tudo isto. S'il vous plaît, diz Valls, rapidamente, aos seguranças, intimando-os a abrir espaço para que o desvairado homem se aproxime. Valls olha-o com ar agastado, irritado, mal disposto, genuinamente lixado. Mas não é com o homem. A minha filha desapareceu no Bataclan e ninguém me diz se ela está na lista dos mortos, isto não é normal neste país. Valls tenta falar com o homem no calor do momento, embora ambos saibam que nenhum esclarecimento realmente útil resultará daquela conversa. Provam da impotência que a rapariga e os restantes sentiram perante os homens que, horas antes, haviam dizimado tudo quanto mexia.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

and after that, we didn't talk



Álbum And After That, We Didn't Talk (2015). GoldLink.
Costuma-se dizer que deitar abaixo um edifício (literal e não literalmente falando) é sempre mais fácil do que o construir. Com Paulo Cunha e Silva, o trabalho de recuperar e erguer a cultura no Porto pareceu, pela primeira vez, negar essa ideia feita. A cidade e o país ficam-lhe com uma dívida gigante, cuja única forma de saldar é cumprir com todo o seu programa para a cidade e aproveitá-lo como modelo a replicar noutros contextos.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

O João Pedro da Costa tem vindo a assinar uma excelente historiografia da presença e importância do videoclip no mundo do hip-hop (e vice-versa), que hoje conheceu o seu oitavo e último capítulo. As escolhas são, obviamente, discutíveis, sê-lo-iam sempre, mas isso é um dos próprios aspectos interessantes deste trabalho. Ainda assim, aquele que é um dos meus videoclips preferidos de sempre (este), realizado pelo Spike Jonze, não podia deixar de lá estar - e está.
 
Para ler, ver e ouvir no Rimas e Batidas (clicar).

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Regresso ao Futuro



Há muitos apontamentos políticos – não chegaria a dizer um “subtexto” político – em Regresso ao Futuro (de que o mais flagrante será a genérica "inimização" da Líbia, enquanto abstracta entidade representativa do Mal - na altura, a Líbia, depois o Iraque, o Afeganistão, o Iraque novamente...), mas talvez os mais interessantes, como tantas vezes acontece, sejam os involuntários, como que deslizes ou um "tropeçar no próprio pé" de que não se deu conta e que revela mais do que aquilo que se quis.

1. No filme, Michael J. Fox, pelo meio de várias desventuras, tem a oportunidade – genericamente desaconselhada pelo cientista interpretado por Christopher Lloyd – de "alterar" o passado para, reflexamente, alterar igualmente o futuro, ou seja, o seu presente. J. Fox fá-lo-á, num primeiro momento, para evitar a morte, no "futuro"/presente, de Lloyd, mas, num segundo, ver-se-á forçado a mexer na h/História de forma a evitar que a sua mãe se apaixone por ele próprio, garantindo, assim, que se apaixone antes pelo seu pai, para que tudo siga o normal "rumo dos acontecimentos". O pai de J. Fox é um adolescente introvertido, "nerd" e débil, gozado e escravizado pelo bully de toda uma vida chamado Biff. O Biff do passado, que o obrigava a fazer por ele os trabalhos de casa, é o Biff que, no presente, é o seu superior hierárquico na empresa, dele usando e abusando, e também com quem, muito provavelmente, a sua mulher (mãe de J. Fox) o trai (há, aqui, um certo trauma da mãe “roubada”).

Através de um conjunto de peripécias, na decisiva noite do baile, o seu pai, em vez de se acobardar no momento em que descobre Biff a forçar Linda (a sua futura mulher) a uma coisa que ela não quer (mas que, ironicamente, muito provavelmente não iria recusar com o seu… filho), inesperadamente rebela-se e aplica um competente murro em Biff, para sempre lhe perdendo o medo. Zás, emancipação definitiva, David derrotando Golias.

Com esta freudiana missão cumprida, J. Fox volta ao futuro para o filme poder terminar em beleza. Percebemos, então, como aquela imprevista reviravolta surtiu não menos imprevistos efeitos: tanto a sua mãe como o seu pai estão, ao contrário do que víramos no início do filme (feios, deprimidos, entediados com o casamento, ela gorda e desgrenhada, ele o mesmo "nerd" da juventude), ricos, apaixonados, cool e muito good looking. O pai, agora um escritor renomado, mostra-se particularmente confiante e charmoso. É neste ambiente de autêntico american dream que os pais dizem a J. Fox que poderá ir passar o fim-de-semana com a namorada no seu novo carro (estranhíssimo o facto de agora o dizerem e mesmo incitarem com um enorme à-vontade, por comparação com o início do filme, em que passar a noite fora era, para aqueles mesmos pais, um tabu – o sucesso e a beleza fazem as pessoas mais... liberais?!). O carro, explica o pai, está só a receber as últimas afinações. E de quem? Nem mais nem menos do que Biff, o Biff outrora bully e explorador que é, agora, o desgraçado, saloio e humilde mecânico do pai de J. Fox, o qual zomba, com arrogância e soberba, do idiota que lhe "arranja o carro para o filho" [o pai chega mesmo a comentar com o filho qualquer coisa como "such a character ("personagem") this Biff is..."].

Sim, houve uma alteração no passado com a sublevação do pai frente a Biff - mas por que razão, no futuro, Biff não poderia ter simplesmente desaparecido da vida dos McFly e do próprio filme? Ou ser um tipo qualquer, que "nem aquece nem arrefece" aquela família (ou até, para sermos ingénuos... um amigo da família)? Porque, de facto, é muito americana - e não se veja aqui demonização alguma - essa tendência para medir as interacções humanas por um rígido tipo de padrão, a saber, a relação de forças que se estabelece entre dominadores e dominados, controladores e controlados, entre "gozões" e "gozados", winners e losers. Tudo numa perspectiva vertical, de “altos e baixos”, fortes e fracos, perspectiva "posicional" de resto alimentada, à exaustão, pelo próprio cinema comercial americano – é assim na escola (Harvards e Princetons para uns, tudo-o-resto para outros), na juventude (capitães da equipa de futebol americano e “nerds” informáticos ou intelectuais), na economia e no “empreendorismo” (os Zuckerbergs da Forbes e os "nobodies", os "zés-ninguém"), no “nós” (americanos) e os “outros” (os estrangeiros).

2. E por isso é que – agora talvez não tão inconscientemente assim – Biff estará novamente no olho do furacão em Regresso ao Futuro 2, agora como um velhinho azedo e desgraçado (por ter passado a vida como o bronco que arranja carros à família de J. Fox, precisamente) que, tal como J. Fox no primeiro volume, irá aproveitar a oportunidade de alterar o passado para influir no futuro e fazer-se um homem rico e poderoso, deste modo voltando a inverter, uma vez mais, a relação de forças e a impor a sua lei – a do mais forte, claro, sempre. Assim, o Biff do "futuro" "roubará", novamente, a mãe a J. Fox e, pior, "adoptá-lo-á" - consumação definitiva da referida inversão e da "morte" do pai (também literalmente, já que é  assassinado a tiro, presumivelmente por Biff).
 
3. Num outro plano, não deixa de ser curioso que, na distopia que é a Hill Valey controlada por esse Biff do futuro, cidade escura de crime e corrupção, J. Fox encontre, na casa que outrora fora a sua, na zona que outrora fora a sua (então idílica mas agora degradada), uma família… negra. Como se, no caos e na anarquia generalizada, os negros ocupassem os lugares dos brancos, é dizer, como se uma distopia negra substituísse (e "estragasse") uma utopia… branca. Reaccionário será dizer pouco.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

my girl, talkin' 'bout my girl (2)

À medida que crescemos e nos vamos tornando cépticos (por vezes cínicos, o que é pior) em relação ao amor, mais nos impressionamos, enternecemos, com as grandes provas ou declarações de amor absoluto. Talvez porque reconheçamos nelas isso mesmo - a prova de que.

my girl, talkin' 'bout my girl


(Thomas Wemyss Fulton, The Sovereignty of the Sea (...), William Blackwood and Sons, Edinburgh and London, 1911)

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Walsh #35 Crítica - "Now, Voyager"

 
 
Este mês, escrevo para o À pala de Walsh uma crítica sobre "Now, Voyager" (1942), filme dito "de mulheres" (weepies, como ficou conhecido o género nos anos 30 e 40) de Irving Rapper, e que, entre outras coisas interessantes (como a insuperável Bette Davis), desafia a lógica convencional de Hollywood do happy ending. O filme passa hoje no Cineclube de Caminha.
 
Para ler aqui (clicar).

carrossel das mentiras




"Carrossel Das Mentiras" (com Ana Alvarez e Vítor Pinto), álbum Árvores, Pássaros e Almofadas (2014). Minus.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Artes Entre As Letras #4

O segundo número de Outubro do Artes Entre As Letras saiu hoje para as bancas. Na página 17, escrevo sobre os volumes 2 e 3 de As Mil e Uma Noites e o filme de Manuel Mozos sobre João Bénard da Costa. (para ler, clicar na imagem, guardar e ampliar)





quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Walsh #34 Ó tu que fumas/A Single Man (Sopa de Planos)


 
A nova sopa de planos é sobre cigarros e o meu contributo a partir da estreia auspiciosa do Tom Ford em 2009; no meu texto (clicar), cito este post (clicar), que, de tão bonito, é impossível não gostar. Boas leituras.
 
Para alguém que contabiliza religiosamente, obsessivamente, os dias que faltam até morrer (no caso, até se matar), a frase “FUMAR MATA” não passa de uma boutade. Fumar matará, sim, mas, no caso de George, é o passado, o que foi e inelutavelmente não volta mais, que o mata todos os dias um pouco mais – até à (auto-)destruição final. Aliás, é a morte do antigo companheiro que o “mata” todos os dias um pouco mais – sim, redundâncias à parte, a morte também… mata. Num dos mais discutidos filmes de 2009 entre os que gostaram e os que odiaram (quanto a nós, encontramo-nos no primeiro grupo), esta cena foi também uma das mais badaladas, concentrando em si o traço estilizado de todo o filme, sem nunca cair, porém, num vazio de ideias ou num decorativismo bacoco. Se o cigarro já foi bengala de muito flirt célebre do cinema (e da vida…) – essa talvez a principal razão, aliás, para toda a iconografia em volta do acto de fumar (muito mais que a dos cowboys da Marlboro!) –, a particularidade, aqui, é a de que se trata de um flirt homossexual, o que, na verdade, se mostra pouco menos que irrelevante, na medida em que, hetero ou gay, o que se retém desta cena é um encontro profundamente sensível (mais do que sensual) entre duas pessoas, filmado por Tom Ford com uma enorme justeza. Sobre o tom rosáceo do céu, provocado pelo fumo da cidade, Carlos dirá que “As veces las cosas más horrorosas tien su punto de encanto”. Não o sabe, mas essa frase não podia ser mais apropriada para o seu interlocutor: mesmo na mais profunda depressão, mesmo neste “serious day” (como George lhe chama), dá-se, inadvertidamente, um encontro como aquele. Depois do cigarro do flirt, fumam um segundo, cigarro pós-tensão, cigarro pós-coito, enquanto conversam sobre meia dúzia de coisas que, na sua simplicidade, condensam as aventuras e desventuras da vida. O que aqui brilhantemente se escreveu a propósito de Tournée (Em Digressão, 2010) vale, na plenitude, para o nosso plano: “Relação fugaz, absoluta, dois ou três minutos a valerem por uma vida inteira lado a lado. Não dizem um ao outro nada de jeito… (…) Passou-se tudo o que interessa, inclusive um grande-plano que dura e dura e dura, dela, alguém que não mais irá aparecer na história, para aparecer com certeza muitas vezes na cabeça e sonhos dele. O sublime à primeira vista invisível porque presente no singelo, no dia-a-dia, entre a padaria e o jardim de família, a revelar-se nas frequências muito baixas ou nos tempos mortos.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Há tempos, na ressaca de uns petardos de adeptos benfiquistas que fizeram feridos no Vicente Calderón, e quando questionado sobre a possibilidade de tal se voltar a repetir e implicar sanções para o clube, Rui Vitória foi categórico, utilizando uma frase invulgar no contexto das sempre paupérrimas "conferências de imprensa" futebolísticas: "Quem ama tanto algo ou alguém não lhe quer mal". Mas todos sabemos que não é verdade - e não é só no futebol.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Desculpe, a senhora importa-se de voltar a passar por mim? Ou pode ficar no mesmo lugar e passo eu por si uma segunda vez? O seu perfume lembra-me alguma coisa ou alguém e gostava de o precisar com mais nitidez.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

like father, like son




O The Game nunca foi um dos meus rappers preferidos (longe disso), nem mesmo quando assinou o The Documentary (estreia, 2005), mas isso não me impediu de ir acompanhando o seu percurso, reconhecendo-lhe talento aqui e ali. Uma das mais bonitas faixas dessa estreia era "Like Father, Like Son", que o Game dedicava ao filho acabado de nascer (e onde o Busta Rhymes fazia um refrão que deixou muita gente a pensar em como se tinha perdido um grande cantor de jazz). Agora, 10 anos depois, em Documentary 2 (díptico lançado há dias), "Like Father, Like Son 2" (novamente com o vozeirão do Busta) surge novamente, mas os destinatários, entretanto, já são dois filhotes. Em ambas as músicas, separadas por dez anos, o mesmo pavor, o mesmo desejo: que os miúdos se portem bem, que sejam tipos decentes, enfim, que não conheçam as mesmas ruas e as mesmas actividades que o pai conheceu para se safar em Compton (e de lá sair). A mesma consciência de que eles são a única coisa que lhe permite ter algum juízo e não se meter em mais chatices (cinco chumbos que aquele cabedal na foto já albergou). De que há rumos decisivos na vida e que ele, que aprendeu com o próprio pai os primeiros truques na arte do traficanço, pode ter uma palavra importante nos dos seus pequerruchos.  E foi isto, belo e simples como todas as coisas que realmente importam, que me arrancou um estremecimento a caminho de casa enquanto reparava no Outono anunciado pelas folhas caídas no passeio.

I hope you grow up to become that everything you can be
That's all I wanted for you young'n, like father, like son
But in the end I hope you'll only turn out better than me
I hope you know I love you young'n, like father, like son

My little man your day is coming

Coming, your day is coming

I tell ya, and when it comes just keep it running
Running, just keep it running, I tell you



sexta-feira, 16 de outubro de 2015

show you a hero



(Catherine Keener interpretando Mary Dorman, em Show Me a Hero, Paul Haggis, 2015)

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Hoje, às 18h30, em frente ao Consulado de Angola no Porto: vigília por Luaty Beirão e restantes presos políticos em Angola.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

"Isto demonstra uma teoria minha. Uma pessoa sobe a uma montanha russa para experimentar determinadas emoções, e pergunto-me se não acontecerá o mesmo com uma relação amorosa. Quando era jovem, eu julgava reprovável e até sujo que um homem que se considerava apaixonado empregasse as mesmas palavras com moças diferentes. No entanto, isso não tem nada de mal. A única fidelidade verdadeira das pessoas concentra-se nas emoções que se deseja voltar a sentir".

Norman Mailer, O Parque dos Veados.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

T&C/AVNP&NMTC

Há dias, dei aqui nota da crítica (clicar) que escrevi a propósito de T&C/AVNP&NMTC. Agora, numa interessantíssima comunicação artista-público, NERVE dá conta, diariamente, do longo processo criativo do álbum, desde os instrumentais, letras, artwork (excelente) até, muito simplesmente, ao estados de espíritos que o acometeram e influenciaram as curvas e contra-curvas de todo o processo. A não perder.

O último registo pode ser lido aqui (clicar), onde encontrarão links para os anteriores.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015



(The Visit, 2015, M. Night Shyamalan)

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Simão Com Tripas

 
 
(As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado, 2015, Miguel Gomes)

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

honey, honey, honey




"You're in good hands", álbum Taste Of Honey (1978). A Taste of Honey.

á-á-áfrica




"Mufete", álbum Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa (2015). Emicida.


quarta-feira, 30 de setembro de 2015

ReB #5 Crítica: “Trabalho & Conhaque” ou “A Vida Não Presta & Ninguém Merece a Tua Confiança” (2015)



NERVE é um dos artistas mais talentosos, autoristas, idiossincráticos e marginais no hip-hop português. Alguém cujo trabalho sigo desde 2006 (EP Promoção Barata) e que tem vindo a construir uma obra muito própria, poética, megalomaníaca e chavasqueira em doses iguais.

Tinha, por isso, de escrever sobre o seu novíssimo álbum (cujo conceito inicial remonta há 10 anos atrás), cuja maior virtude é o seu maior defeito: a manutenção da mesmíssima linha dos trabalhos anteriores, com a (grande) excepção da sonoridade global do álbum. Para ler e, sobretudo, ouvir no Rimas e Batidas (clicar).

"(...) estes anos volvidos, o seu imenso talento mantém-se intocado, sendo isso que lhe permite adornar o seu trabalho com doses cavalares de egocentrismo, megalomania (em “Lenda”, mas até na própria comunicação com os fãs) sem que isso nos cause incómodo. Isso e o facto de sabermos que, por detrás dessa máscara (do “Andy Kaufman” a que NERVE alude em “Subtítulo”), há um tipo esquivo (“esquizóide”, nas suas palavras), introspectivo, complexado (a meias com a tal megalomania, como é audível em “Conhaque”), noctívago (conferir sample inicial de “Monstro Social”), mais ou menos misantropo – afinal, um tipo como muitos de nós, mas, no caso, dotado de um particular talento para escrever canções e que faz do seu muito desalinhado hip hop o meio de expelir a sua visão cáustica, sarcástica e auto-depreciativa de si, do mundo e da própria arte (“Se eu fizesse o pino / a arte ressuscitava / E um urinol voltava a ser um urinol” – Duchamp e dadaísmo, em “Monstro Social”, dizem alguma coisa ao leitor?)".

(Excerto)


Artes Entre As Letras #3

O segundo número de Setembro do jornal Artes Entre As Letras já está nas bancas. Na página 19, a crítica de cinema, onde escrevo sobre O Inquieto (Miguel Gomes) e Homem Irracional (Woody Allen).


Walsh #33 Ponha os olhos nesta sopa de planos/Strangers on a Train (Sopa de Planos)



Saborosíssima, esta nova Sopa de Planos. Sobre óculos. Para ler no local do costume (clicar).

São marcas como estas que fazem os filmes de género constituírem-se nisso mesmo – em géneros. No caso, referimo-nos à circunstância de determinados objetos, aparentemente insignificante ou inofensivos, poderem ser essenciais, reveladores, determinantes para o desenrolar da narrativa nos thrillers, nos filmes de suspense, enfim, nos filmes de terror, nessa (aparente) insignificância acabando por reverberar, afinal, o registo MacGuffin hitchockiano que já tivemos, aliás, oportunidade de abordar numa outra Sopa de Planos. Em Strangers on a Train (Desconhecido do Norte-Expresso, 1951), o objecto principal que ilustra esse “tique de género” é o isqueiro que permitirá a resolução da trama. Mas há outros – e os óculos deste plano são, justamente, um desses exemplos, na medida em que funcionam como elemento confirmador daquilo que as aparências indiciavam, ou seja, o perfil psicopata de Bruno. Depois da voltinha de barco pelo “Tunnel of love” (com outro espantoso plano das figuras literalmente cavernais do casalinho e de Bruno e o seu chapéu no seu encalço) e do primeiro grito-comic relief da rapariga, Bruno, já em terra (desta feita na… “Magic Isle”), encontra-a e puxa do tal isqueiro, não para lhe acender um cigarro, mas apenas para identificar o alvo. “Is your name Miriam?” – “Oh yes…”, estas as últimas sorridentes palavras de Miriam (a primeira parcela da equação do perfect murder acertado no comboio), cujo lento estrangulamento nos é dado a ver pelos seus óculos “fundo de garrafa”, espécie de “janela indiscreta” avant la lettre (óculos que Bruno fará questão de “devolver” a Guy). E a culpa por esse voyeurismo é atirada para cima de nós, perdão, Miriam é “atirada” para cima de nós. Toda esta deliciosa sequência é conferível aqui.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

boyhood

No ano passado, quando saí do Boyhood, enviei, muito emocionado, com uma mão no volante e um cigarro piegas na boca, uma mensagem ao meu irmão. Na noite passada, fomos ouvir o Sam the Kid aos Poveiros, ele num frémito, sempre de braço no ar, a tentar captar tudo o que se passa à sua volta. Abraça-se a mim nas músicas que, de tanto ouvir no quarto ao lado, passou a amar. No dia seguinte, que é o dia em que me preparo para sair de casa dos meus pais, bato à porta do quarto. Acabou de acordar. Está escuro e vejo o ecrã do computador aceso. Pergunto-lhe o que está a ver e ele diz-me que é o filme do Linklater. Vem-me aquela frase do filme à memória:
 
"You know how everyone's always saying «seize the moment»? I don't know, I'm kinda thinking it's the other way around. You know, like the moment seizes us".

 

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

cinéma vérité


(Safe, 1995, Todd Haynes)
 
1. «Marine Richard, de 39 anos, sofre de hipersensibilidade eletromagnética e não pode estar junto de telemóveis, 'routers', televisores ou outros gadgets, tendo alegado estar impossibilitada de trabalhar».
 
 
2. «Se tudo isto (a “doença” de Carol) é real (patológico) ou pura ficção (paranóia), é coisa que o filme, deliberadamente, nunca esclarece, já que, nas idas ao médico, o diagnóstico é sempre o que de nada de anormal se passa com a sua saúde. É Haynes a “medir”, queremos dizer, a confundir as fronteiras da percepção comum sobre a noção de “loucura” – Carol está mesmo doente? E se está, de quê? De depressão? Ou da tal “environmental disease”? Mas isso existe mesmo? Ainda que haja esse propósito claro em desfocar a fronteira que convencionalmente traçamos entre sanidade e insanidade [a mesma que é colocada em causa, ainda que em termos distintos, mas tendo outrossim uma mulher como protagonista, por Rossellini em Europa ’51 (1952)], nem por isso deixa de ser evidente que a “doença” de Carol parece ser outra: o profundo vazio, o absoluto tédio, a perfeita esterilidade do seu dia-a-dia, pontuado por lanches com amigas tão frívolas como ela própria, idas ao ginásio e ao cabeleireiro e cujo ponto alto é o “susto” com o facto de a cor do sofá encomendado para a sala de estar não corresponder à pretendida. É a somatização deste imenso tédio e dos seus “químicos” (sofás, cabeleireiros, ginásios) que, a pouco e pouco, fará de Carol um ser perfeitamente alienado (“alienígena” mesmo), débil (Carol tem por apelido “White”, que condiz com a sua cor e com a do leite que muito infantilmente bebe no filme) e fantasmático (as deambulações solipsistas pelo jardim de sua casa a meio da noite)».
 

sábado, 29 de agosto de 2015



(My Darling Clementine, 1946, John Ford)

domingo, 16 de agosto de 2015

"God was wrong"




(Bigger Than Life, 1956, Nicholas Ray)

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Truffaut meets Miller

"Quanto aos filmes eróticos ou pornográficos, sem ser um espectador apaixonado pelo género, penso que constituem uma expiação ou, pelo menos, uma dívida por saldar com os sessenta anos de mentira cinematográfica sobre as coisas do amor. Faço parte dos milhões de leitores de todo o mundo que a obra de Henry Miller não só seduziu como ajudou a viver, sofrendo eu então com a ideia de que o cinema continuava tão atrasado em relação aos livros de Henry Miller quanto à vida tal como ela é. Infelizmente, ainda não consigo citar um filme erótico que seja o equivalente de Henry Miller (os melhores, de Bergman a Bertolucci, foram filmes pessimistas) mas, afinal, essa conquista da liberdade é bastante recente para o cinema e devemos igualmente considerar que a crueza das imagens levanta problemas bem mais bicudos do que a das palavras".

François Truffaut, Os Filmes da minha vida, Orfeu Negro, 2015, p. 20.