terça-feira, 31 de janeiro de 2012

espécimes

A senhora, nos seus cinquenta anos, muito penteada e de porte elegante, estabelece a causalidade mágica e, aproximando os olhos e o nariz aguçado do jovem, com aquele jeito de quem tira, com brutalidade e despacho, uma conclusão científica, pergunta:
então, o senhor é cinéfilo, não é assim?
O rapaz pisca os olhos engolindo em seco, afunda-se na cadeira, os chumaços do casaco como dois fantasmas erguendo-se contra si, mas, num repente, num assomo quase infantil, revolta-se e atira:
a senhora é herbívora?

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O Serviço

Ainda a propósito deste artigo que escrevi para a RDB, aqui fica um excelente exemplar de um storytelling: numa atmosfera cinematográfica (a música começa logo com um sample de um diálogo retirado de um filme que não consigo neste momento identificar) tributária de uma Gotham City, suja, corrupta e opressiva, "O Serviço" (que traz à memória, inevitavelmente, a música homóloga dos Da Weasel, do longínquo 3º Capítulo, 1997), de Nerve, é a história de dois marginais que, capturados pela polícia, são incumbidos de realizar um serviço em troca da sua liberdade.
They're crazy... they shoot and run... they're like dogs!





"O Serviço" (com Blasph), Eu Não Das Palavras Troco Ordem (2008), Nerve.

domingo, 29 de janeiro de 2012

el pequeño buda



Emociono-me, de súbito, com a faixa, tão singela, tão monumental, que os adeptos do Espanyol de Barcelona dedicaram a De La Peña quando este abandonou os relvados:

"DIREMOS QUE TE VIMOS JUGAR"

sábado, 28 de janeiro de 2012

o vazio

Na vidraça de uma agência bancária, leio o seguinte slogan: "Valorize o seu tempo, fazendo render o seu dinheiro".
Após uns breves segundos de meditação, tiro a prova dos 9:

Valorize o seu dinheiro, fazendo render o seu tempo.
Faça render o seu tempo, valorizando o seu dinheiro.
Faça render o seu dinheiro, valorizando o seu tempo.


Apetece responder assim:



"Come parla?! Le parole sone importanti!!"

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

recontinuar



A Semente do Homem (1969), Marco Ferreri.

intimidade

A dificuldade destas coisas é o grau de intimidade que, sem se dar por ela, criamos. É um problema dos nossos tempos: acelerados, imediatos, intensos, em que o oculto dos corpos e da alma se desvenda num ápice, ao mesmo tempo que se prescinde dos ancestrais códigos da descoberta mútua, vagarosa e paciente. Depois, a evidência abate-se sobre os homens sem dó nem piedade: quanto maior a intimidade, maior a dor no momento do desenlace.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

out in the street they call it murder

Hoje fiz a minha primeira conversão no Lince (mortífera ironia, esta que associa um animal cuja espécie - a ibérica - está em vias de extinção no nosso país a uma língua - a portuguesa - extinta por decreto).

domingo, 22 de janeiro de 2012

dúvidas


Palombella Rossa (1989), Nanni Moretti.


Quantas vezes me sinto assim: indeciso em alinhar com o Fiori di Gelati, compreender o Delizia ou reconhecer razão ao Cannavo.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

storytelling

Escrevi um artigo, para a Rua de Baixo, em que me debruço sobre o significado do storytelling - que, como registo literário musicado, digamos assim, é transversal a todos os géneros musicais desde tempos imemoriais - no hip-hop e, mais particularmente, na música do português Sam the Kid (um dos meus heróis de ontem e hoje). O artigo pode ser lido neste espaço.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

o jazz, o hip-hop

Publiquei, no P3, um artigo sobre a forma distinta como, hoje, o jazz e o hip-hop - tão similares na origem, do ponto de vista histórico-social - são sentidos e (mais ou menos) consumidos. A imagem que encabeça o artigo não foi por mim seleccionada, mas pelos responsáveis do P3, que, ao acaso ou não, não podiam ter feito melhor escolha: a dupla Pete Philly & Perquisite (os jovens da fotografia) formaram uma das duplas, entretanto desfeita, mais brilhantes e prolíficas no que à mistura de jazz (e soul, funk, etc.) e hip-hop diz respeito. Se tiverem interesse nestas coisas, podem ler o artigo ali ao lado.





(é, note-se bem, a segunda vez que aqui deixo esta música, cujo único defeito é o de ser de uma melancolia perniciosa para os sentidos)

domingo, 15 de janeiro de 2012

o descontrolo



La Peau Douce (1964), François Truffaut.


Talvez que nunca o ímpeto sexual, o desejo libidinoso descontrolado, tenham ficado tão evidentes no cinema como em La Peau Douce (1964, François Truffaut), mais concretamente, na cena em que Pierre (Jean Desailly) leva Nicole (Françoise Dorléac), a sua amante, a jantar a um restaurante onde, como ela lhe pediu, também se dance.

Terminado o jantar, Nicole está com o diabo no corpo e quer dançar. Pede que Pierre a acompanhe, mas este confessa-lhe que nunca soube dar um passo de dança. É um retrato duro, ainda que típico, da figura do intelectual (Pierre publica livros e gere uma revista literária): o tipo cerebral, imerso no mundo da razão e da lógica, incapaz, por isso, de estimular os sentidos através de uma coisa tão radical (ou simples, conforme as perspectivas) como abanar o corpo ao som da música. O tolhimento de Pierre é confrangedor, e ele, sabendo disso mesmo, diz uma das coisas mais estúpidas e desajeitadas que um homem pode dizer a uma mulher. Quando Nicole lamenta que, se ele não a acompanhar, ficará sozinho na mesa, Pierre afirma, com um sorriso aparvalhado, qualquer coisa como “eu fico a ver-te, dá-me prazer”. Ela ri-se despreocupadamente e, numa cena de uma sensualidade extraordinária, dança freneticamente, cheia de graça, na pista. Pierre examina-a obcecadamente, e é nesse preciso momento que se faz luz: Nicole representa, numa mulher, tudo aquilo que Pierre nunca foi – a emoção, a carnalidade, a volúpia. Pierre faz parte daqueles que pensam o mundo; Nicole, dos que o vivem e transgridem. Entre um e outro está um universo, e se compreendemos o que nela lhe agrada, o contrário já não se afigura tão evidente (a não ser a estabilidade burguesa, coisa que literalmente falta a uma hospedeira de bordo, sempre “cá e lá”).
No momento em que Truffaut filma a lindíssima Françoise Dorléac, de perfil, no meio da pista – como se esta fosse só sua – arranjando, com lascívia, o cabelo, Pierre atinge o zénite: incapaz de se controlar, de ficar, ali, “a ver”, mas incompetente, ao mesmo tempo, para se abeirar de Nicole, saca de um prospecto do bolso onde procura o número de telefone de um hotel para os dois passarem a noite. O modo como Truffaut monta toda esta cena – vaivém entre os planos de Nicole, dançando (movimento, leveza), e Pierre, sentado e impotente (rigidez, calculismo) – é de uma tensão extrema e, arrisco dizer, quase sexual. Ao vê-la dançar, Pierre está num estado de excitação intenso e, desejoso de avançar para Nicole, de a possuir, toma as medidas necessárias para o efeito, já que esse passo não pode ser dado no local em que se encontram. A forma como Pierre recorre ao prospecto, impaciente e nervoso, é demonstradora do desejo, incontido, que o atravessa e, simultaneamente, da sua incapacidade para possuir uma mulher de outra forma que não pelo acto sexual propriamente dito. É, permitam-me a falta de solidariedade masculina (isto existe ou é só entre as mulheres?), toda uma falta de charme.

sábado, 14 de janeiro de 2012

I do not appear in this picture


A Woman in Paris (1923), Charles Chaplin.


É o que me apetece dizer quando me vejo envolvido em guerras que não são as minhas.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012




Um aspecto curioso em La Peau Douce (1964) é o facto (admito que não racionalizado pelo Truffaut - eu disse "curioso", não "importante" ou "revelador") de o primeiro acto de adultério propriamente dito, cometido por Pierre, francês, ter lugar em Portugal. Isto em 1964: estamos a falar de uma época, portanto, em que a França democrática, livre e tolerante nos costumes (com o Maio de 68 mesmo ali à portinha), contrasta, radicalmente, com o Portugal fascizóide e ditatorial (eu sei que uma coisa normalmente implica a outra, mas é para deixar os pontos nos i's), em que a moral conservadora católica é quem mais ordena. É, pois, num lugar onde o matrimónio era, à época, quase uma raison d'état, que o acto de libertinagem, de transgressão, tem lugar, e não em França, essa terra de perdição. É curioso, como disse.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

downgrade

Um jovem bem apessoado senta-se ao meu lado num restaurante de fast-food. Vejo que pede, para o almoço, uma salada. Vai dando higiénicas garfadas enquanto, de cabeça baixa, alheio a tudo o resto, mira um bloco de rebordos brancos. Atrevo-me um pouco mais e reparo que lê um jornal diário, ali, num ecrán brilhante e omnisciente.
Tão novito e já não sou, definitivamente, um homem destes tempos.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

dúvida metódica (2)

Há dias, estava sentado a ler o jornal num café onde costumo fazer tempo. Tinha acabado de ficar perplexo com o número de páginas (5!) que o Jornal de Notícias (que até tinha em relativa boa conta) dedica à rubrica "Segurança" (estupros, roubos, pancadaria, eu sei lá) quando entra a filha do dono (deve ter aí uns 15, 16 anos) e, auto-acreditando na sua ironia perspicaz, diz (com um sotaque tripeiro não traduzível em palavras): é, é, há crise mas o Pingo Doce está cheio...

É este o efeito estupidificante do discurso da crise - entretanto tornado na crise do discurso - que a comunicação social perpetua. Oh minha menina, mas então o Pingo Doce havia de estar vazio? Que eu saiba, os supermercados ainda são locais onde se compram, sobretudo, bens de primeira necessidade: peixe, carne, legumes, leite, etc. (especialmente o Pingo Doce, que, ao contrário do Continente, por exemplo, não comercializa outro tipo de produtos que não alimentares). Portanto: se, por causa da crise, as pessoas não se alimentassem, o que era feito delas? Evaporavam? É suposto o Pingo Doce estar vazio só porque está tudo a apertar o cinto? E comia-se o quê? Da terra que já ninguém trabalha?
O pior é que a culpa não é da pobre rapariga; o que acontece é que a cabeça das pessoas, de tanto serem matraqueadas com a narrativa da crise (que vai render teses de doutoramento a muita gente), da tamanha distorção provocada por rádios, televisões, internet, etc., deixa de pensar racionalmente, com clareza, e é impelida a formular juízos perfeitamente descabidos como este, num processo mental inconsciente e repetitivo. É isto o que de assustador o quarto poder significa em tempos como o presente: o de inculcar nas pessoas já não uma atitude conscienciosa de contenção e poupança (a qual é por demais necessária, não se discute), mas, antes, raciocínios abstruzos, irracionais - tudo em vénia de um suposto sacrifício supremo que devemos à crise (que já atingiu um grau de personificação semelhante ao dos "Mercados"). É outra forma de alienação, agora camuflada sob o epíteto de "informação", já não com o escopo de desligar as pessoas da esfera política, mas de, sei lá, as impedir de viver, divertir, aproveitar o que houver de bom para aproveitar (o que é visto agora quase como um vício ou desvio de personalidade). Promove-se, deste modo, a auto-flagelação mediática no seu melhor, como se tivéssemos cometido, num passado sombrio de que já ninguém se lembra (e são tantos os que agora vêm doutrinar que nunca, mas nunca, deixaram a torneira ligada enquanto lavavam os dentes), um pecado capital. Em todo o lado o jornalismo nos impinge a crise, de tal sorte que todos temos que a sentir, reflectir, recear - no limite, todos temos que estar em crise.
Não duvido da gravidade daquilo que se nos depara. Mas o que se passa no campo político é da política; já não há desculpa para a comunicação social não conseguir - não querer, pois o panic now! faz vender, já se sabe - falar noutra coisa que não no quanto fodidinhos estamos. No ponto a que chegamos, já não vale dizer que o jornalismo tem a responsabilidade de reportar "o que se passa"; não, dizer isso, actualmente, já só se afigura como justificação barata - e falsa - para uma evidência: o jornalismo quer vender ou, o que é dramaticamente real e sistémico, o jornalismo "tem que" vender, nem que para isso tenha de fazer do seu objecto um e apenas um tema, como se nada mais no país e no mundo se passasse. Deixem-me que vos diga que eu era capaz de escrever uma lista extenssíssima com o que de extraordinário (concertos, filmes, exposições, conferências, festas populares, jogos de futebol, et cetera) aconteceu em Portugal no último ano.
Hegel escreveu, no seu tempo, que o jornal era a oração diária do homem moderno. Pois bem, nos dias que correm, não há modernidade que resista a tamanha enxurrada (os juristas chamar-lhe-iam "diarreia", mas os juristas são pessoas estranhas), expressão máxima de um jornalismo medíocre e banal (porque é disso que se trata, pura e simplesmente: mediocridade). Não sei se tempo é dinheiro, mas o meu tempo, pelo menos, é demasiado precioso para ser delapidado por esse dispositivo de reprodução formatador (e, neste sentido, totalitário - que não haja dúvidas disto!) que nos atrofia a cabeça e os sentidos. Enfim: sempre preferia os que diziam que o mundo acabava em 2012 - tinham mais graça e eram menos prepotentes.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

mas só bem lá no fundo

No fundo, somos (quase) todos a favor de uma Europa federal, mas - franzam o sobrolhos com este "mas" - com outros tipos lá sentados.
Isto (última parte) tem tanto de racional como de desculpa para dizer que sim, epá, a Europa é uma ideia linda, mas. E, por isso, é que a UE fica onde está: no meio, entre uma racionalidade por cumprir e um chavão decorativo - um meio que é um nada, pálido e anónimo.

dúvida metódica

Oiço que, chegados ao ponto a que chegámos, é altura de deixarmos de barrar os dois lados do pão com manteiga.
Não percebo. Por mim, com vacas gordas ou magras, sempre barrei o dito só de um lado, e nem sequer no plano das ideias concebo o peganhento que deve ser segurar numa carcaça toda lambuzada - suponho que se pegue com as pontas do polegar e do indicador, tipo "pinça", o que deve dar um trabalhão dos diabos. Isto é ainda mais evidente - e viscoso - se o aderente for margarina em vez de manteiga. Que porcaria.

só a pensar

Estava sentado ao seu lado. Curvado, meneava a cabeça colericamente, cerrava e distendia os punhos com frémito, os músculos retesados, a cabeça em negação como quando nos recusamos a aceitar algo de trágico. De repente, como uma criança que deixa de sentir a mão da mãe na sua, começou a chorar, lágrimas de pedra abafadas por suspiros contidos.
Até ali, testava a elasticidade do meu individualismo autista - que não era tão autista assim, porque oferecer ajuda é muitas vezes lido como o reconhecimento de fraqueza, razão pela qual pensamos, medrosamente, em evitar o embaraço alheio. Não aguentei mais, coloquei a música em pause e perguntei
precisa de ajuda?
O homem, supreendido, virou a cabeça na minha direcção e, com os olhos muito abertos, francos, disse abruptamente
não, não, estou só a pensar

domingo, 8 de janeiro de 2012

eis a questão



Hamlet revisitado.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

rdb



Publiquei um artigo, intitulado As explosões em "Zabriskie Point", na Rua de Baixo, uma revista on-line que se dedica, com originalidade, a imensas coisas que interessam ao mundo. O texto, em si, corresponde àquilo que já tinha escrito neste blog a propósito, já advinharam, do filme "Zabriskie Point" (1970), do Antonioni. É apenas um apontamento pessoal sobre um momento muito concreto do filme (não tem, portanto, a pretensão, nem de perto nem de longe, de ser uma "crítica").
Duvido seriamente que alguém tenha paciência para ler aquilo tudo (no blog também, mas, enfim, este cantinho é meu e eu reservo-me aos desvarios que assim entender), mas, como diz o povo, há que não desanimar (este adágio serve para tudo, o que é uma maravilha: para quando um casamento corre mal, para quando a nossa equipa perde dois jogos consecutivos ou se estamos, pura e simplesmente, estupidamente melancólicos).

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Da verdade



O Conto dos Crisântemos Tardios (1939), Kenji Mizoguchi.


A verdade, a sinceridade radical como condição do - verdadeiro, também ele - Amor? Que plano-sequência, este - 5 minutinhos sem um único corte.

planos

O João Palhares, do Cine Resort, fez-me um simpático convite para participar na rubrica "Planos", espaço em que ele vai convidando bloggers para comentarem, tal como o nome indica, determinados planos de filmes. Eu escolhi o "plano da maçã", presente em Primavera Tardia (1949), do Ozu. Se tiverem interesse, podem ler o texto aqui. De todo o modo, deixo-o também neste blog.





O plano que escolhi pertence a um dos filmes icónicos de Yasujiro Ozu: Primavera Tardia (1949). Diz ele respeito ao momento, já quase a fechar o filme, em que Shukichi Somiya, o pai de Noriko, se encontra em casa, sozinho (mais do que isso: solitário, o que é tudo neste filme), a descascar uma maçã. Este plano, mais do que valer isoladamente, vale por todo o filme: ele é um momento-chave em Primavera Tardia, e isso por ser também, em grande parte, um momento-chave na própria personagem de Shukichi.

Ao longo do filme, Shukichi é-nos apresentado como o pai que, a partir do momento em que se apercebe de que a filha entrou, como mandam a tradição e a honra locais, em idade de casar, não poupa nos esforços em conduzi-la para esse destino. Fá-lo, todavia, de um modo cândido, nunca agressivo ou impositivo. Aliás, essa é uma nota dominante em todo o ambiente que circunda Noriko: ninguém lhe impõe, autoritariamente, o casamento (do qual nunca conheceremos a outra parte, o noivo), pese embora a persistência com que a interpelam a propósito desse assunto, sejam familiares (especialmente a sua tia) ou amigos, a sufoque. Shukichi demonstra ser, portanto, um homem tolerante, plácido e, até, condescendente ou compreensivo para com os receios e as hesitações da filha (para quem a felicidade maior está em ficar junto do seu pai) – aquando do passeio a Kyoto (o último passeio a dois, como melancolicamente a ele se referem pai e filha), Shukichi diz a Noriko que também o seu casamento passou por muitas dificuldades e que só a perseverança sustém uma relação e consolida a felicidade (ensinamento com uma ressonância impressionante em tempos como os nossos). Crente do caminho marital que a filha deve tomar, Shukichi, quase num acto de fé, sacrificando a sua própria felicidade e bem-estar (proporcionados pela companhia da filha), criará, aos olhos de Noriko, a falsa aparência de apoiar de bom grado o seu casamento, inclusivamente mentindo-lhe ao dizer que ele próprio deseja voltar a casar. Esta duplicidade forçada faz com que Shukichi se comporte sempre de forma perfeitamente contida e determinada perante a filha, ocultando as suas verdadeiras emoções e angústias.

Ora, é justamente neste ponto que o plano que escolhi assume uma importância capital. Pois é no momento que ele capta que vemos a primeira – e única – explosão de Shukichi: é depois da tempestade (leia-se o casamento), feito o sacrifício supremo, que Shukichi se irá abrir e revelar o seu verdadeiro interior, desfazendo a imagem do homem em paz consigo mesmo. Na casa que até então havia sido partilhada por pai e filha, só resta o primeiro: Noriko não mais está presente, embora Shukichi (como nós) pressinta a sua presença em cada espaço. Shukichi dirige-se à sala e senta-se na cadeira descascando uma maçã (tarefa de que, outrora, Noriko se ocuparia gentilmente). Disse “explosão” e não é à toa: vencido pela tristeza, pára de descascar a maçã e chora (ainda que naquele jeito sempre contido dos japoneses – bem diferente dos norte-coreanos, ao que parece), de cabeça baixo, consigo mesmo. O choro é silencioso, deixando que a música (cordas) apure a atmosfera de separação reinante. Ele sabe que um tempo, um ciclo terminou, embora tenha a consciência, simultaneamente, de dever cumprido, já que o casamento de Noriko se mostra uma inevitabilidade da vida e da ordem natural das coisas (ele mesmo o diz, muito determinado, a Noriko, na última noite passada em Kyoto). E é talvez por isso que Primavera Tardia termine, imediatamente a seguir, com um plano sobre o mar, como sinalizador, roubado à mãe-natureza, da inevitabilidade da passagem do tempo e do carácter cíclico da vida.

Do ponto de visto técnico, e tal como em muitos outros filmes de Ozu, sobretudo a partir de Primavera Tardia (fase de aprimoração da técnica depurada do japonês), o plano é absolutamente fixo, sem lugar para quaisquer movimentos de câmara ou panorâmicas. O enquadramento, esse, é perfeito: primeiro, vemos Shukichi sentado descascando a maçã, com a profundidade do plano a sugerir o vazio provocado pela ausência de Noriko; depois, e semi iluminadas, apenas a faca, a maçã e as mãos - as mãos, imóveis, de um homem abatido por um destino que ele próprio, sacrificando-se em nome de um bem maior, ajudou a desenhar.
A força deste plano é extraordinária: apesar de todo o pesar que ele respira, não contempla nenhum momento, ainda que breve, de compunção. A vida seguirá o seu curso, dir-nos-ão, então, as ondas do mar.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Tribruto



Tribruto - "Grande e Grosso".


Estes putos do Algarve, uns pândegos do pior, são aquilo que de mais próximo o nosso país ja esteve dos Beastie Boys (com uns Jungle Brothers e uns De La Soul à mistura). Fanfarrões, sem se levarem muito ou nada a sério, fazem da egotrip o seu palco por excelência, e o discurso é, todo ele, gozão e com doses cavalares de sarcasmo e palermice. Os ouvintes de rap português não vão entrar na onda deles, claro, habituados que estão, ortodoxamente, a um rap que tem de ser, por natureza, de consciência social. Convém lembrar, porém, que, pese embora essa dimensão política (que ninguém pode negar), o rap nasceu, em 70, como música de festa e diversão, colorindo os ghettos de uma América profundamente desigual. Portanto, se o rap não é só festa, ele também o é. E se há coisa de que este país precisa como oxigénio é de pagode.
O seu álbum Algazarra é um regaboge pegado do princípio ao fim, e só não se vai rir quem for choninhas.

domingo, 1 de janeiro de 2012

para o resto não contem comigo



Outono Escaldante (1972), Valerio Zurlini.