Acontecia-lhes várias vezes. Conversavam sobre determinado assunto e, quando um deles ficava em suspenso na busca da palavra mais acertada para definir uma pessoa, caracterizar um afecto ou descrever como o sol se tinha posto bonito naquele dia, o outro abria a boca e zás, diziam, sem combinar, sem falsas telepatias de ocasião, a mesma palavra. Calavam-se e fitavam o chão, a cumplicidade tornada culpa infantil, daquela que não pesa mas nos liga, pelas melhores razões, aos outros. Depois, de sobrolho erguido, olhavam, intrigados, um para o outro como se de dois detectives perscrutando pela origem daquele golpe de asa se tratassem. Enquanto o olhar se mantinha, passavam a ser, por breves segundos, dois animais potencialmente rivais que se avaliam antes do confronto físico (ou, se for o caso, do acasalamento), como quem diz, em pensamento, hmmm, o que se passa aqui, quem és tu, o que fazes no meu território, quem te deixou entrar, aqui há gato...
Ficavam-se por este breve jogo teatral e nunca verbalizavam a perturbação que a frequência com que isto acontecia lhes causava. Faziam de conta que não era nada - tinham uma tendência irreprimível para não alardear o belo mas sublimar o banal, como quase todas as pessoas inteligentes, cientes de que as palavras quase sempre dizem mais do que devem e menos do que os sentimentos mais retumbantes e irrepetíveis exigem, em ambos os casos dessacralizando a beleza primordial das imagens e dos gestos. Era, então, nesse silêncio que deitavam a certeza de que algo maior do que eles os habitava - aos dois. Era nesse silêncio que, admirados, retomavam o que estavam a fazer e, como que exaustos com o impacto do que tinha acabado novamente de acontecer, recuperavam, lentamente, as coordenadas respiratórias. Sorriam, então, discretamente, de cabeça baixa, enquanto pensavam não pode ser, como é possível, voltou a acontecer, meu deus. Às vezes, um deles, mais levado pela comoção, meneava a cabeça em negação durante uns segundos enquanto estas frases lhe assaltavam o pensamento. Os segundos suficientes para que, no momento em que o outro olhasse na sua direcção secretamente em busca de uma reacção, a cabeça já estivesse imóvel. Como se não fosse nada.