segunda-feira, 31 de março de 2014

como se não fosse nada

Acontecia-lhes várias vezes. Conversavam sobre determinado assunto e, quando um deles ficava em suspenso na busca da palavra mais acertada para definir uma pessoa, caracterizar um afecto ou descrever como o sol se tinha posto bonito naquele dia, o outro abria a boca e zás, diziam, sem combinar, sem falsas telepatias de ocasião, a mesma palavra. Calavam-se e fitavam o chão, a cumplicidade tornada culpa infantil, daquela que não pesa mas nos liga, pelas melhores razões, aos outros. Depois, de sobrolho erguido, olhavam, intrigados, um para o outro como se de dois detectives perscrutando pela origem daquele golpe de asa se tratassem. Enquanto o olhar se mantinha, passavam a ser, por breves segundos, dois animais potencialmente rivais que se avaliam antes do confronto físico (ou, se for o caso, do acasalamento), como quem diz, em pensamento, hmmm, o que se passa aqui, quem és tu, o que fazes no meu território, quem te deixou entrar, aqui há gato...
Ficavam-se por este breve jogo teatral e nunca verbalizavam a perturbação que a frequência com que isto acontecia lhes causava. Faziam de conta que não era nada - tinham uma tendência irreprimível para não alardear o belo mas sublimar o banal, como quase todas as pessoas inteligentes, cientes de que as palavras quase sempre dizem mais do que devem e menos do que os sentimentos mais retumbantes e irrepetíveis exigem, em ambos os casos dessacralizando a beleza primordial das imagens e dos gestos. Era, então, nesse silêncio que deitavam a certeza de que algo maior do que eles os habitava - aos dois. Era nesse silêncio que, admirados, retomavam o que estavam a fazer e, como que exaustos com o impacto do que tinha acabado novamente de acontecer, recuperavam, lentamente, as coordenadas respiratórias. Sorriam, então, discretamente, de cabeça baixa, enquanto pensavam não pode ser, como é possível, voltou a acontecer, meu deus. Às vezes, um deles, mais levado pela comoção, meneava a cabeça em negação durante uns segundos enquanto estas frases lhe assaltavam o pensamento. Os segundos suficientes para que, no momento em que o outro olhasse na sua direcção secretamente em busca de uma reacção, a cabeça já estivesse imóvel. Como se não fosse nada.

domingo, 30 de março de 2014

5-30


"A Dúvida" (c/ Sam the Kid), álbum 5-30 (2014). 5-30.

Os 5-30, super-grupo composto por Carlão (aka Pacman, ex-Da Weasel), Regula e Fred (Orelha Negra), têm amanhã, dia 31 de Março, o seu dia D, dia do lançamento do aguardadíssimo álbum de estreia homónimo. A minha crítica será publicada, por isso, nas próximas semanas.
Entretanto, dos cheirinhos que já têm sido postos a circular, destaca-se, desde logo, "A Dúvida", faixa com o grande, grandíssimo, Sam the Kid (que também anda a adiar, há tempo demais, novos lançamentos), e que se abeira do momento em que, numa relação, alguém - ou, não o sabendo, ambos... - se interroga sobre a seriedade da mesma e, no mesmo passo, sente os primeiros ventos do receio em, furada a reciprocidade de intenções, ficar "sem pé". A dúvida, precisamente - a eterna dúvida.

"Eu sei que sou azedo
e retrocedo no fim
eu não cedo assim tão cedo
tenho sido sempre assim"

family business



"Familly Business", álbum The College Dropout (2004). Kanye West.

Quando o "Cánié" nos fazia verter uma, duas, três lágrimas, enchendo-nos o coração de soul e joy. Não deixa de ser desapontante ouvi-lo hoje e perceber como, enfim, há coisas que ficaram mesmo lá atrás. Esta é uma das mais belas músicas que este ainda curto século já nos deu e, musicalmente falando, está lá toda (mesmo toda) a música negra do século anterior. Cheers.


And look, you tell me you ain't did it, then you ain't did it
And if you did... then that's family business.

domingo, 23 de março de 2014

uma hipótese

O tempo fê-lo perceber que o amor era, para si, a obsessão por um rosto. A obsessão infinita, abismal, pelo rosto de uma mulher e, sobretudo, a convicção, do tipo da que um homem sente apenas duas ou três vezes na vida como um raio que o racha ao meio, de que esse rosto, por mais vezes que fosse olhado, manteria a sua qualidade mais radical ("pura", outros dirão): a sua inesgotabilidade, a capacidade de ser uma porta permanentemente aberta para o mundo, para os sentidos, para o desejo. O amor era um rosto, uma folha em branco (e a candidez na alvura da pele de uma mulher condiz com a metáfora) escancarada para as coisas e para as palavras. O mistério e a neutralidade límpida que, numa mulher bonita, significam a serenidade e um certo desligamento solipsista em relação ao mundo.
Nestes casos, o amor não deixa de traduzir um certo egoísmo, pois que é, ou também é, para quem assim olha, uma hipótese: a hipótese de nunca nos cansarmos de um rosto. Só que esse rosto (a pessoa amada) não sabe dessa condição, não o pode saber, pelo que, para os que amam rostos (ou que começam por amar rostos), o amor se joga nessa fina aleatoriedade, nessa possibilidade futura de nunca se dar por encerrado um rosto, de nunca o ter por inteiramente conhecido, apreendido, controlado. Por isso, para si, a banalização que o passar do tempo costuma infligir no amor não partia tanto do olhar subjectivo de quem olha como da perda da expressividade desse rosto, e era nesse pressuposto que afastava o peso da consciência que de tempos a tempos se manifestava. A culpa era sempre desse rosto que se esgotava. Que secava.

segunda-feira, 17 de março de 2014

the problems of a 20 something




"Heavenly Father", EP Cilvia Demo (2014). Isaiah Rashad.

domingo, 16 de março de 2014

close (up)



Mónica e o Desejo (1953), Ingmar Bergman.

domingo, 9 de março de 2014

swanging



"Connect", álbum Nothing Was The Same (2013). Drake.


Swanging, eyes closed just swanging...

quinta-feira, 6 de março de 2014

Agustina

Era uma mulher extremamente calculista. Quando o conheceu, não gostou da sua aparência, sobretudo do cabelo curto. Aproveitou uma pedra da calçada fora do sítio para ficar um pouco mais para trás no caminho e, em silêncio, confirmou que o cabelo não lhe ficava bem com aquela forma. No entanto, aceitou o convite, pois sabia que, dali a uns tempos, com o cabelo um pouco maior, aquele seria um homem que gostaria de apresentar às suas amigas.

domingo, 2 de março de 2014

Alain Resnais


Ervas Daninhas (2009), Alain Resnais.
 
Foi um domingo triste, este. Com Resnais, um dos acontecimentos mais trágicos da humanidade ganhou, numa complexa e irónica inversão, uma coloração um pouco mais bela e optimista: we will always have Hiroshima. Até sempre.