provavelmente, ninguém anda a ligar a isto, mas passa-se algo de extraordinário, da ordem do “bigger than life”, no mundo do R&B mais alternativo. Ela é, passe a redundância, H.E.R., uma miúda californiana fabulosa – e “fabulosa” é só mesmo pela sua voz, porque o rosto, o nome, enfim, a identidade, é coisa que nunca lhe conhecemos desde que apareceu com o “H.E.R. Volume 1” em 2016. 2017: ano do “Volume 2”, um dos melhores discos que ouvi recentemente (direitinho para os lugares cimeiros das minhas contas:
http://obosforo.blogspot.pt/2017/12/2017-discos.html), um dos melhores discos de R&B dos últimos anos.
bom: entretanto, aparece este tipo vindo do nada. Ele é H.I.M., acrónimo para Her In Mind - ou melhor, H.E.R. In Mind. o seu rosto também é inacessível, uma incógnita. então: um tipo absolutamente obcecado com Ela e que faz do título de cada canção sua uma “resposta” às canções dela. doppelgänger. assim, onde Ela canta “Avenue”, Ele segue pelo “Boulevard”; onde Ela pede por “Lights On”, Ele sugere-lhe “Lights Out”; “I Won’t”? “I Will”, então; e por aí fora, sem excepção. quando Ela tem uma capa em que a sua silhueta surge como sombra sob tons laranja, Ele recorta o mesmo grafismo mas agora sob tons cinza. não é manobra de marketing; não é, também, como tanta gente desejou, um casal sumamente apaixonado que escreve cartas de amor dissimuladas através de canções; nem é, obviamente, mera coincidência cósmica (um tanto cómica, porém), embora o facto de “H.E.R.” servir de acrónimo para “Having Everything Revealed” torne tudo ainda melhor. e, sendo assim, as coisas ainda se tornam mais intricadas...: H.I.M. = H.E.R. In Mind = Having Everything Revealed In Mind...
pior! (ou melhor!): Ela já afirmou publicamente que não conhece Ele de lado nenhum (nem Ela nem ninguém, né), que até não acha piada nenhuma à brincadeira, diz que Ele se aproveitou da sua ideia original. d'Ele só silêncio absoluto. não deixa de ser compreensível: Ela tem uma carreira ainda tão curta que parece demasiado cedo para uma homenagem destas (mas se ela fosse uma cantora consagrada, o gesto já seria visto com genuíno afecto? provavelmente). Ela e Ele têm ambos identidades ocultas, mas aquilo que os coloca em contacto é precisamente isso, o mistério, a obsessão (d’Ele, nossa) por Ela, por todos aqueles que amamos e nos são distantes ou desconhecemos (embora possamos razoavelmente suspeitar que também Ela comece a alimentar uma obsessão por... Ele). Ele tem-na em mente, deseja assemelhar-se a Ela, Ele quer dar-lhe pistas sobre si - sabes quem sou? como sou? o que penso? -, o feitiço contra a feiticeira (há um belo odor a feitiçaria nisto tudo, aliás). la double vie d'Elle. ou… talvez esteja a dar-lhe pistas sobre Ela própria, como se, ao falar de si, falasse sobre Ela; como se, na posição de um observador externo, interpretasse mais fundo – descendo pelo subconsciente ao qual, por vezes, nós próprios não conseguimos aceder ou compreender na plenitude –, mais fidedignamente, as emoções, os impulsos, os gestos d’Ela. sim, Ela (ou Ele?) que vive duas vezes.
os aficionados discutem. que coisa bonita que Ele está a fazer; não, o tipo está só a tirar proveito de um trabalho alheio; não, não e não, eles são mesmo um casal ou, então, um antigo casal e ele, tendo ficado na mó de baixo, está a reagir ao desmoronamento; quero lá saber, adoro ouvi-los aos dois e isso para mim basta.
a obsessão prossegue dentro de momentos.