domingo, 26 de agosto de 2018

mesmo à saída, tremendo muito das mãos depois de enfiar a custo o porta-moedas na malinha, olhe eu já tenho noventa e sete anos por isso posso dizer tudo o que penso sabe o senhor é muito bonito

e enquanto retribuo a simpatia, primeiro pelo reflexo do espelho depois virando-me na cadeira e passando-lhe a mão pelo ombro magríssimo, penso no tempo que para aqui andamos para dizermos aos outros o que queremos dizer. talvez a vida devesse ser, de facto, como naquela famosa boutade do woody allen: nascermos velhinhos e irmos rejuvenescendo à medida que o tempo passa. pois então, aos noventa e sete anos, já nenhum não-dito teríamos para nos castigar. menos poesia teríamos também escrito, talvez.

"Direcção de actores"









(La signora senza camelie, 1953, Senhor-Mestre Antonioni)

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

quando eu disse que o corte lhe ficava tão bem assim, parece a sara tavares, respondeu-me
 
não, fico bonita
 
(então pensei que era "bem" que, de facto, queria dizer, não achava que fosse bonita)

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

história em quadrinhos


 
 
 
(LP Golden Boys, 1969)

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

a senhora doutora que por mim se apaixonou e por quem eu quase me apaixonava sentenciou carinhosamente está tudo bem o senhor só precisa de vitamina dê. na minha ignorância, nunca tinha ouvido falar em tal, mas imediatamente me passou pela cabeça a ideia de que, a ter uma cor, a vitamina dê seria do mesmo amarelo-céu a que cheiram os seus cabelos de anjo. para mim, até ao momento em que esta mulher de quem eu involuntariamente sei mais do que queria me diz o quão gosta de Roma com um sorrido dorido, vitaminas eram as dos sumos naturais e as daqueles homens que incham muito os músculos ou, então, as dos meninos cansados e distraídos da escola que precisam de se concentrar ou os meninos só cansados das universidades que fazem das madrugadas drogadas danças de estudo
 
e eu sem saber
viria a cumprir o seu receituário por
transviados trilhos de areia, fósseis
que levo para casa para me recordar
de que um dia também eu já
fui
pele osso farelo
as gotículas terminaram antes disso
depois foi só mato
pinhais, estrume
pézitos pardos que se arrastam
indolentemente
 
da dê passei para a guê
gelados
peixinho
cigarrinho
ésse de suplementos e sal
um festim vitamínico, um
banquete da mesma letra do
bagaço que nos deixa atordoados para o resto
da tarde
tosgados como gostamos
de pronunciar
o rui já está de braços abertos e calções
na cabeça lá longe
no mar a dani fala sem
parar com os olhos
semicerrados nomeadamente do
garcía márquez e eu digo-lhe
então vou oferecer-te nos anos o meu livro preferido
do garcía márquez não do
vargas llosa e o monas
coitadinho tanto
precisa de descansar mas
por esta hora já é um faraó egípcio

agre doce





(LP Copacabana Sadia, 1982)









(La Piscine, Jacques Deray, 1969)

Não Consegues Criar O Mundo Duas Vezes @ ÉVORA

Talvez não seja do domínio comum, mas algum do hip-hop mais fresco e irreverente (ou "fora-da-caixa", como agora se diz a propósito de tudo e de nada) alguma vez feito em Portugal saiu de uma cidade de 50 mil habitantes chamada Évora - e, em particular, da Sistema Intravenoso, que, depois da Matarroa e juntamente com a Monster Jinx, é a label independente com mais graça do país. "Dentes de Ouro & Flow de Platina" (2011) é um dos mais divertidos, javardos e inteligentes discos... que tenho nos ouvidos, clássico de um género musical que, até há uns anos, insistia em levar-se demasiado a sério (embora eu também o ame quando ele se leva a sério, ora pois). Fiz uma entrevista com o Marcos Valle (a sair em breve) e, nem de propósito, é nesse álbum do Pródigo e do Víruz que a "Mentira" é samplada-transformada na "Gira" - "Espero que esta noite não acabe paraplégico / Já 'tou com o sombrero / Parece que 'tou no Mérricow!".
 
Não Consegues Criar O Mundo Duas Vezes foi exibido ontem em Évora, ao ar livre, na Praça do Sertório, às 22h, no âmbito do festival Artes à Rua.
 
 
 

 

meu/teu

 



 





(Ana, Mon Amour, 2017, Cãlin Peter Netzer)

"Debaixo de água, está o rosto da tua amada"










(L'Atalante, 1934, Jean Vigo)
 
 
[Tivesse eu o visto antes de escrever sobre o "SWIMMING" do Mac Miller…]

dead(th) letters





(Cronaca di un amore, 1950, M. Antonioni / Muriel ou le temps d'un retour, 1969, A. Resnais)

sabor dos nossos sonhos








"Pró sabor dos nossos sonhos não fugir
(...)
Mas por favor, Senhor Sol,
Me dê de volta Virgínia
Senhor Sol"



(LP Jardim Elétrico, 1971)

feminin(ist) gaze




 
(Il mistero di Oberwald, 1980, M. Antonioni)

How green was my valley




(Ligares, Julho de 2018)

"SWIMMING" no ípsilon


 
Depois de "The Divine Feminine", apaixonante e apaixonado disco de 2016, Mac Miller está a nadar com os tubarões. E se isso pode soar perigoso, o certo é que daí resultou um fabuloso, comovente e elegantíssimo disco de um miúdo que largou as bóias e compreendeu que a vida é mais ou menos como a água, ora cristalina, ora turva. "SWIMMING" Ípsilon da última sexta-feira
 
 
NOTA:
Por questões de edição/”legibilidade”, um trecho do texto, que reproduzo de seguida, foi alterado na sua redacção original, que era a seguinte (e o amigo é o Tiago, que partilhou comigo a escuta do álbum, vezes sem conta, por noctívaga...s estradas alentejanas): "Um amigo a quem começámos por apresentar o disco com a faixa '2009' questionava-nos, enquanto escutava o trecho introdutório, 'Isto é música clássica?'. Não, claro que não é música clássica, mas a pergunta deixa transparecer a delicadeza, a filigrana da composição, assim como as emoções que o disco produz no ouvinte do primeiro ao último minuto".


Artigo on-line: https://www.publico.pt/2018/08/19/culturaipsilon/noticia/um-falso-disco-de-verao-1841013

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

do/don't











(La Piscine, Jacques Deray, 1969)

"Travel Light", Children of Zeus, no ípsilon



No Ípsilon da semana passada (atenção ao artigo sobre/entrevista com as Pussy Riot), escrevo sobre "TRAVEL LIGHT", primeiro LP dos ingleses CHILDREN OF ZEUS, e no qual continuo a tentar rastrear o que de melhor se vem fazendo na música negra britânica (cfr. Loyle Carner, Rejjie Snow).

"(...) conjunto de treze canções cujo grande problema – embora, verdade seja dita, tomara a muitos discos padecerem deste tipo de 'problemas' – reside na sua relativa indiferenciação (...), sem rasgos ou arrojos que puxem o disco da sua palpável zona de conforto (...). Essa zona chama-se (...) neo soul, corrente americana de finais de 90/inícios dos 2000 que, liderada por gente como D’Angelo ou Erykah Badu, fez uma re-leitura da soul clássica dos 60/70 (a da Motown, Stax, etc., ou seja, aquela a que, curiosamente, a 'northern soul' de Manchester de algum modo sempre se opôs) a partir das possibilidades oferecidas pela electrónica, o R&B e, sobretudo, o hip-hop. Dito de outro modo, se Travel Light tivesse surgido por essa altura, com toda a certeza que teria, hoje, o estatuto de clássico; em 2018, soando tudo muito bem, é certo, de uma ponta à outra (arranjos perfeitos, orquestração coesa), fica-se, contudo, por esse travo saudoso (...), por uma fórmula que, não arriscando um milímetro, nos devolve a impressão de que já ouvimos tudo isto noutros discos (...). Isto dito, que o leitor não se engane: se estiver menos familiarizado com essa neo soul que o tempo levou (hoje substituída, de algum modo, por esse genérico carimbo de “contemporary R&B”), Travel Light será, sem sombra de dúvidas, uma agradabilíssima viagem, de que 'Sling Shot Riddim' (...), '360º' (o baixo distorcidíssimo, muito boogie, 'espacial', que tanto traz Amp Fiddler como Dâm-Funk para cima da mesa) e, em especial, 'Daddy’s Car' (comoventíssima rememoração desses momentos familiares que não mais nos deixam ao longo da vida) constituem as curvas mais entusiasmantes".

On-line: https://www.publico.pt/2018/08/13/culturaipsilon/critica/a-soul-de-manchester-continua-viva-1840328

terça-feira, 14 de agosto de 2018

meu querido bafedo

quando ainda nem estradas percorríamos, tu já me dizias amigo se for preciso voltamos antes quando tu quiseres. saberás lá tu. só superado pelas estradas que, então sim, percorremos no carro com demasiados medronhos no sangue tremendo, breu abrasador que cortamos com os braços de fora das janelas jamais fechadas. as copas das árvores todas alinhadas para nós, como se nos recebessem surrealisticamente para o mais materno dos universos paralelos. um corredor vertical, ascendente, em diante, um silêncio imenso mesmo quando o disco toca, sempre o mesmo disco, e ao meu lado as palavrinhas que sempre cantas, I can't keep on losing you pausa Ei! mas não é Ei! é Wait!, nunca o dizes correctamente e eu nunca te corrijo porque também gosto mais de Ei!. no silêncio, puxas de um cigarro e com bondade dizes queres noras e pois quero, já me sai fumo da boca. quando sopro, aí sim, o silêncio interrompe-se por instantes, tal como quando vejo, do canto do olho, que levantaste o punho e estás à minha espera, pois que eu me apresso e eles se tocam. dizia, também neste momento o silêncio é silenciosamente interrompido, como um segredo se quiseres (desses infantis que tu trazes nos olhos pequeninos traídos pelo corpo forte), ossos que chocam produzindo decibéis maiores que os da música alta, tão alta, que ouvimos. e eu furioso teclando notas e mais notas, inclusivamente a de que meus senhores diz-vos o crítico este é um disco para escutardes em estradas alentejanas pela noite fora mas já sabendo que, na hora da verdade, os meus olhos verão descontexto e ingenuidade nesse trecho

quando tomo o banho que antecipa a camisa branca e as calças beges que me preparam para o regresso, pensamentos indesejados, esses cuja lição vem no manual de sonetos em que não peguei por uma vez quando percorríamos estradas, assomem momentaneamente e eu encara-os com tranquilidade, indolência, até. penso, vejo, desejo o pacotinho de sumo na mesinha de cabeceira que me coloria o ânimo assim que tirava a venda dos olhos, então noras já tomei o pequeno almoço onde estás. olha, estava no quarto mas era como se não estivesse, bebendo já o sumo natural de goiaba enquanto a testa se nos escorre na sombra mais tórrida da vila e tu te debates ao telefone com a mulher da tua vida achas que é mesmo noras
 
eu sei lá, queridíssimo amigo. vamos antes de novo até àquela escuridão total da carrapateira, o passadiço que nos leva à praia ou rio ou o que é isto, a luz do telefone não esclarece. então fumamos e olhamos o céu, antes de voltarmos a percorrer as estradas, as mesmas que nos levarão mais tarde, estranhamente, inevitavelmente, à cidade, na qual, cabisbaixo, com os olhos fixos no salão de bilhar que está fechado para férias, te oiço dizer

meu querido mês de agosto.

vamos antes ficar com os olhos vivíssimos da tua avó, matriarca muito bem sentada de pés na mesinha que nos diz antes de sairmos no seu orgulhoso inglês de Ema

sweet dreams

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Aracy



 

 
(LP Os Golden Boys, 1958)

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

um gesto infantil, tão tonto

"(...) o primeiro lugar de Agustina que eu conheci foi a casa em que ela e Alberto Luís se fixaram desde a década de 70, situada na Rua do Gólgota, num dos montes do Porto, mesmo junto aos caminhos do romântico, entre quintas sossegadas que foram de ingleses, por cujas áleas perfumadas meninas pensativas arrastaram as caudas dos vestidos. (...) Numa manhã de aguaceiros, apanho o metro e chego à Póvoa de Varzim. Agustina viveu aqui dos seis aos 12 anos, quando o pai geriu o ne...gócio do jogo, primeiro no Café Chinês, depois no casino novo. (...) Imagino a pequena Agustina, acompanhada pela prima Laura, calcorreando as ruas da vila, entrando nas modistas a pedir retalhos para vestir as bonecas, frequentando as mercearias que vendiam rebuçados irisados em cartuchos pardos, indo à Travessa dos Casinos pedir hóstias ao fabricante, entrando no Cinema Garret para se rir das narrativas dos amores infelizes. Mas sei que continua a ser uma menina algo isolada, que lê muito e inventa histórias que partilha com as colegas durante as aulas de lavores. Não faltariam motivos para a efabulação entre os episódios da Bíblia, de que conhecia passagens de cor, as tiradas sentimentais das fitas a que assistia no cinema, as muitas leituras, mais ousadas do que as que seriam de supor numa menina da sua condição. Mas eu gosto de pensar que Agustina se inspirava também noutras coisas. (...) Se, em qualquer indivíduo, a etapa da adolescência é sempre propícia à introspecção, num adolescente que lê, os livros alimentam esse estado propício ao mergulho profundo no interior do ser. Em tempo de exílio e prostração ('não direi depressão, porque não chegou a tanto'), parece inevitável que Agustina começasse a escrever. Descobrindo nas páginas extraordinárias escritas por outros 'um milagre, uma criação do mundo', aos 15 anos sente o mesmo impulso, mas, em vez de enveredar pela escrita em verso, prática mais usual entre as meninas com aspirações ao cultivo das letras, escreve um romance. (...) Como já se ouviu muitas vezes, nenhum biógrafo consegue pesquisar diariamente o seu biografado sem ser tocado por essa experiência. Contagiada pelo espírito do lugar (...), acerco-me da poltrona das ramagens, sento-me nela, deixo-me fotografar. Um gesto infantil, tão tonto que não deve ser levado à conta de arrogância (...). Sim, Agustina sentava-se aqui. Dir-se-ia que, quando me falta a imagem, a confissão, a evidência, também eu invento a verdade. (...) 'A possibilidade duma realidade é infinita'. E a verdade de uma vida é múltipla e contraditória".
 
("Lugares de Agustina", imperdível texto de Isabel Rio Novo na LER, Primavera 2018, n. 149)

anamnésica

"Ler Platão ou Shakespeare não significa ter acesso a conteúdos cognitivos ou, ainda menos, a valores que eles tenham veiculado. Muitas vezes é reconhecer coisas em que tínhamos pensado, mas ditas por outras pessoas. Wittgenstein disse num prefácio de um dos seus livros que este só seria percebido por pessoas que já tivessem pensado aqueles pensamentos. (...) Há 2500 anos, Platão observou, astutamente, que a experiência principal da aprendizagem é a anamnésica, é uma experiê...ncia de rememoração. Como se disséssemos: 'Ah, estou a lembrar-me de uma coisa que afinal sabia!'. (...) Estamos a lembrar-nos de pensamentos que podíamos ter tido ou já tivemos. Imagine alguém que está a assistir a uma representação do 'Rei Lear'. Logo no início, ouve a Cordélia dizer: 'Eu não consigo içar o coração até à boca'. E pensa: 'É extraordinário como eu já pensei isto'".
 
(Miguel Tamen em entrevista à LER, Primavera 2018, n. 148)

Não Consegues Criar O Mundo Duas Vezes @ Hip Hop Film Festival NYC


 
 
Yo!
 
Screening of Não Consegues Criar O Mundo Duas Vezes last week at Hip Hop Film Festival NYC (New York city) for y'all brothers and sisters