Republica-se aqui, integralmente, o texto escrito para o catálogo do ciclo retrospectivo Tarkovsky - Eterno Retorno, que teve lugar entre 20 Janeiro e 9 de Fevereiro de 2017 no Cine Humberto Mauro, em Belo Horizonte, Brasil. Para efeitos de publicação, o texto sofreu uma adaptação do português de Portugal para o português do Brasil. O catálogo (466 páginas) encontra-se publicado conjuntamente pelo Cine Humberto Mauro e Fundação Clóvis Salgado.
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Sonhos e Pesadelos, Guerra e Paz
“Chama-se Educação Europeia. (…) educação
europeia são as bombas, os massacres, os reféns fuzilados, os homens obrigados
a viver em buracos, como animais… Mas eu aceitei o desafio. Podem dizer à
vontade que a liberdade, a dignidade, a honra de ser homem, enfim, tudo isso,
não passam de um conto de fadas, pelo qual as pessoas morrem. A verdade é que
há momentos na história, momentos como aquele que vivemos, em que tudo o que
impede o homem de desesperar, tudo o que lhe permite acreditar e continuar a
viver, precisa de um esconderijo, de um refúgio. Por vezes, esse refúgio é
apenas uma canção, um poema, uma música, um livro. Eu queria que o meu livro
fosse um desses refúgios; que, ao abri-lo, depois da guerra, quando tudo tiver
acabado, os homens reencontrassem o seu bem intacto, que soubessem que puderam obrigar-nos
a viver como animais, mas que não conseguiram obrigar-nos a desesperar”.
Romain
Gary, Educação Europeia, Sextante
Editora, 2014, p. 62.
1. O criador, a criação e o
espectador
Nenhuma
obra cinematográfica será mais penetrante do que aquela cuja proposta
artística, filosófica ou espiritual provoca no espectador uma reação empática
com os pensamentos de quem a projetou. A obra de Andrei Tarkovski possui, como
é sabido, uma dimensão fortemente onírica (presente, de resto, em algum do
cinema soviético dos anos 50 e 60, sobretudo), visível, com formas e tons
diferentes, em filmes tão diversos (ou não tanto assim) como Solaris, O Espelho, Stalker, Nostalgia, O Sacrifício e, claro, A Infância
de Ivan. Ora, este último é um desses momentos em que as mais fundas
motivações do criador provocam um impacto de tal ordem no espectador que se
pode dizer que o filme cumpriu o seu lídimo propósito: tocou absolutamente o
espectador, o fez sentir e passar sensivelmente pelo mesmo que o autor experienciou
e inclusive o motivou a erigir a sua criação, ainda que a experiência seja
irredutivelmente subjetiva. Escreveu o próprio Tarkovski no seu derradeiro
livro-testamento Esculpir o Tempo: “(…)
se um autor se deixar comover pela paisagem escolhida, se esta lhe evocar
recordações e sugerir associações, ainda que subjetivamente, isso, por sua vez,
provocará no público uma emoção específica” . No
meu caso, A Infância de Ivan, o primeiro
longa-metragem do russo baseado no conto Ivan
de Vladimir Bogomolov (1957), tocou-me, por uma livre associação de ideias
(mecanismo muito caro ao próprio Tarkovski, especialmente em O Espelho), a um nível radicalmente
pessoal. Explico.
Quando,
há uns longos anos, vi o filme pela primeira vez, as ambíguas cenas filmadas no
bosque e na praia me impressionaram profundamente. Cenas ambíguas num duplo
sentido – digamos que objetiva e subjetivamente. Em primeiro lugar: trata-se de
sonhos, de memórias ou, ainda, de memórias sonhadas? Depois: a quem pertencerão
tais sonhos ou memórias? Dito de outra forma: serão puramente sonhos do pequeno
Ivan ou serão memórias dos seus tempos familiares antes da guerra? E serão de
Ivan ou do próprio Tarkovski quando criança (como as memórias que se
multiplicam ao longo de O Espelho)?
Obviamente que a resposta exata a estas questões é o que menos interessa, embora
Tarkovski tenha manifestado que “(…) os quatro sonhos baseiam-se todos em
associações bastante específicas. O primeiro deles, por exemplo, do começo ao
fim, até às palavras: «Mamãe, veja ali um cuco!», é uma das minhas primeiras
recordações da infância. Eu tinha quatro anos e estava começando a conhecer o
mundo” .
A
minha confusão foi maior pelo fato de A
Infância de Ivan ter sido o meu primeiríssimo contato com Tarkovski, muitos
anos depois de, ainda criança, o meu olhar ter se fixado na capa de um VHS de Nostalgia que os meus pais haviam
trazido de Londres. Passado uns anos, quando voltei a pensar no filme e a rever
alguns stills, especialmente os das
cenas na praia, eles me remeteram, por associação livre, a uma longínqua memória
da minha infância. Uma “memória”, disse eu, mas, hoje, talvez 20 anos depois,
nem eu próprio tenho a certeza se o que vou contar em seguida se passou exatamente
assim ou, sequer, se efetivamente aconteceu. Numas férias de Verão, fui passar
uns dias, como era habitual, na casa dos meus avós, onde quase todos os meus
tios viviam, já que eram ainda bastante novos. A minha tia Marta – ou “Titi”, como
eu lhe chamava e chamo ainda hoje – decidiu, para minha alegria, que, naquela
tarde, iríamos à praia. Os meus pais não tinham colocado uma roupa de banho na
mala e na casa dos meus avós não havia roupa de garoto fazia muito tempo. Então,
depois da excitação inicial, disse, timidamente, à Titi que não podia ir à
praia por não ter a roupa apropriada. Eu teria, por esta altura, uns 9 ou 10
anos e já todos os complexos com o corpo que socialmente vamos adquirindo na
vida. “E então? Vai pelado! Qual é o problema?!”, Titi respondeu imediatamente.
Eu rejeitei, disse que não queria ir pelado, fiz birra, mas em vão. Meteram-me
no carro e lá fui eu com a Titi e as amigas a desfrutar dos últimos momentos
vestido, enquanto me angustiava com o que aconteceria dentro de minutos. Essa
tarde da minha vida foi uma tortura chinesa: 3 ou 4 horas como um
australopiteco no meio de homo sapiens
numa praia apinhada de gente (com roupa de banho), velhos e novos, pequenos e pequenas
da minha idade. Não satisfeita, a minha Titi deliberou que se desse o
tradicional “passeio até lá no fundo” da praia, me obrigando a desfilar o meu corpo
nú para quem quisesse ver. Foi uma tarde traumatizante, não sem o seu lado cómico, e
da qual muitos psicanalistas certamente se entreteriam a retirar conclusões sobre
o meu subsequente desenvolvimento enquanto indivíduo.
Há
tempos, contei isto à minha mãe, que não só não se recorda da Titi lho ter contado,
como questionou mesmo a sua veracidade. Será ela, de fato, uma memória da minha
infância? E uma memória fiel ou já altamente deturpada pelas minhas vivências e
pelos mistérios do meu subconsciente? Ou terá sido apenas um sonho, uma
alucinação, um delírio que, por ação freudiana desse mesmo subconsciente, se
consolidou com a aparência de memória real em mim?
Não
tenho a certeza. “Existe, afinal, uma enorme diferença entre a maneira como nos
lembramos da casa onde nascemos e que não vemos há muitos anos e a visão
concreta que se tem da casa depois de uma prolongada ausência. Em geral, a
poesia da memória é destruída pela confrontação com aquilo que lhe deu origem” . É
também esta nebulosa dúvida que paira sobre as lindíssimas imagens de Ivan com
a mãe (curiosamente, Ivan nunca sonha com o pai) e com uma menina (a irmã? um
primeiro e inocente amor?) no bosque e na praia, cenas verdadeiramente
intemporais (como a do beijo roubado no bosque), daquelas que se inscrevem na
história do cinema com a mesma naturalidade e rapidez que se inscrevem na
memória das pessoas que as vêem, acompanhando-as até ao final das suas vidas.
Não há, no cinema e fora dele, muitas imagens assim, com um efeito tão
poderoso, tão impressionante. E,
afinal, não é exatamente isso que nos acontece quando vemos um filme e, passado
um tempo, o revemos mentalmente na nossa cabeça? Uma con-fusão de imagens
(desse filme e de outros que vimos), diálogos, rostos, gestos, sequências, planos,
tudo isso nos impedindo de termos a certeza do que vimos? “Será que ela viu o
roubo ou foi outra personagem?” “Será que aquele plano existe mesmo?” A este respeito, é famoso o episódio da folha de
sala de Vidas Inquietas (Angel Face,
1953, de Otto Preminger) que João Bénard da Casa escreveu para a Cinemateca
Portuguesa (de que foi seu Diretor por larguíssimos anos), na qual o autor
fazia referência às sirenes de uma ambulância no final do filme, quando as
mesmas, afinal, pura e simplesmente não existiam…
2. Sonhos do passado, pesadelos do
presente
O
filme começa justamente com uma memória/sonho/memória sonhada. Minto: o filme
começa sem imagem, no escuro, apenas com aquele que é um dos maiores atributos
– frequente e injustamente subvalorizado, o que, em parte, se compreende, em
virtude da proeminência e do esplendor da imagem tarkovskiana – da obra de Tarkovski,
a saber, o trabalho de som. São cucos que ouvimos, cujo pio desde logo
contribui para a criação da atmosfera poética das cenas que veremos
imediatamente a seguir. A esse pio – que voltará ciclicamente durante o filme –
se juntará, mais tarde, o som da água a pingar, o crepitar da lareira ou o
ranger das cadeiras de madeira, tudo sons orgânicos que, inseridos com rigor e
precisão, imprimem uma enorme carga poética ao filme no conjunto. O som da água
a pingar, por exemplo, assim como os próprios planos de poças de águas, são
algo que se perpetuará nos filmes seguintes de Tarkovski (e que, mais imediata e
iconicamente, associamos a Stalker),
mas, na verdade, são já possíveis de encontrar na média metragem O Rolo Compressor e o Violino que o
cineasta, ainda estudante, realizou em 1961.
Depois
do fulminante plano subjetivo oblíquo sobre a mãe acompanhado do grito de Ivan
(que, nesse momento, olha para o céu, indício da morte, saberemos mais tarde, às
mãos dos soldados alemães), este acorda de um sonho e se vê num pesadelo. O
pesadelo, afinal, da realidade: a guerra, a morte, a fome, a miséria. E, talvez
por isso, Tarkovski filme os primeiros planos “acordados” com um certo traço
expressionista (que não se voltam a ver no resto do filme), quer pela
iluminação, quer pelo modo concreto como são filmados (contra-picados e planos
na oblíqua, coisa rara de ver em Tarkovski).
Estas
primeiras cenas e o contraste delas resultante – entre sonho e realidade, paz e
guerra, luz e sombra (a tarde soalheira na praia e o céu escuríssimo,
pesadíssimo do campo de batalha), passado e presente, planos horizontais e
planos verticais – condensa, por isso, uma das linhas de força do cinema de Tarkovski:
o onirismo e o modo singularmente poético como Tarkovski constrói e ambienta os
seus filmes, quer em termos da imagem-em-movimento, quer, como já referido, no
que ao som diz respeito. Exemplo disso é o momento, logo nas cenas do primeiro
sonho (recriação de uma espécie de “Éden” mítico), em que Ivan, extasiado de
felicidade enquanto contempla uma borboleta, começa a acompanhá-la e a
levitar-se no ar, leve como uma pluma, rindo-se com gosto. A Infância de Ivan será um dos poucos filmes de Tarkovski – senão o
único – em que a dimensão onírica é tão explicitamente colocada em cena, no sentido
em que Ivan, em vários momentos, é filmado a sonhar (ou, mais rigorosamente, a
acordar dos seus sonhos). Nos filmes subsequentes, essa dimensão, estando tão
ou mais presente, será, porém, apenas sugerida, insinuada, às vezes de modo tão
intenso e permanente que o filme pode assemelhar-se, ele mesmo, a um sonho (Solaris, O Espelho, Stalker). Com
efeito, se, em A Infância de Ivan, o
espectador pode discernir perfeitamente o que é sonho e o que é realidade
(passado e presente, felicidade e desespero), nesses outros filmes, tal divisão
é deliberadamente desfocada e não sabemos mais em que terreno temos os pés.
Por
outro lado, ao colocar Ivan no centro, na transição entre essas duas dimensões
– sonho e realidade, leveza (a tal que lhe permite levitar) e peso (dos tempos
de guerra) –, Tarkovski explicita, desde logo, o título do filme: a infância de
Ivan é, na verdade, uma não-infância, um outro tipo de “infância” que não é
suposto os meninos da sua idade conhecerem. Uma infância roubada pela guerra, a
mesma que lhe roubou a família, e que, quando Ivan está dormindo, o “rouba” ao
sonho e o obriga a acordar para a realidade. O sonho como capacidade de evasão,
de fuga à realidade, eis uma das linhas de força do cinema de Tarkovski, da
mesma forma, claro, que o cinema o é para o espectador – também no cinema
desligamos a luz do candeeiro e, no escuro do quarto/sala, nos recostamo
confortavelmente e nos deixamo levar pelo sono/sonho das imagens e do som,
momento encantatório em que submergimos numa realidade alternativa, feita de
pessoas e histórias que não existem senão no filme.
Embora
não através do sonho tout court mas,
sim, da imaginação (mas o que é imaginar senão… sonhar?), a ideia de Evasão já
havia sido expressamente posta em cena no final de O Rolo Compressor e o Violino, e de um modo que vai justamente de
encontro ao que apontei acima. Sasha combina com o amigo mais velho (Sergei)
irem os dois ao cinema – o tal “lugar dos sonhos” – que fica em frente a casa
de Sasha. Todavia, ao chegar em casa, a mãe de Sasha (filmada, ao contrário do
amigo Sergei, quase sempre da cintura para baixo, modo de sublinhar a sua
distância e autoridade em relação ao seu filho ainda criança), o proíbe de
sair, uma vez que a sua avó virá lhe fazer uma visita. À hora marcada, Sergei,
percebendo que Sasha já não aparecerá, acaba por ir embora, enquanto a criança,
impotente, o observa da janela, ainda lhe enviando um aviãozinho de papel com
uma explicação que Sergei não chega a ver. Condenado a ficar em casa, Sasha,
olhando-se ao espelho – momento em que a imagem fica turva –, começa, então, a
imaginar – e a câmera a projetar – o percurso de saída desde a porta de sua casa,
passando pelas escadas e corrimões do prédio, até o pátio lá embaixo onde,
finalmente, encontrará Sergei. As cordas e o órgão que, neste momento, se ouvem
só acentuam o tom onírico, fantasioso, desse momento de evasão/imaginação.
Os
vários momentos em que o pequeno Ivan sonha são também isso: milagrosos
instantes de evasão à sua realidade, à dura e traumatizante verdade da perda e
da dor. De alguma forma, é como se a “infância normal” de Sasha em O Rolo Compressor e o Violino fosse
aquela que Ivan não tem. Ou, atendendo à diferença de idade entre os dois, quem
nos garante que Ivan não é Sasha, apenas uns anos depois, quando a guerra já
estalou e a música do violino foi substituída pela das bombas? Ou será Sergei –
que não parece ter relações familiares e que conta a Sasha, a certa altura, que
esteve na guerra – o Ivan “do futuro”, o Ivan envelhecido?
3. Memória, Trauma, Vingança
Memória,
Trauma e Vingança são elementos interligados, que se movimentam num mesmo
círculo, influenciando-se e condicionando-se reciprocamente. Se isso é verdade,
então, para efeitos expositivos, sempre diríamos que, em termos “sequenciais”, é
a Memória de Ivan relativamente à perda da família que nele incrustou o Trauma,
por sua vez unicamente possível de atenuar – nunca, todavia, de suprimir por
completo – por via da Vingança.
A Infância de Ivan
inicia e termina da mesma forma: em estado onírico, isto é, no sonho de Ivan. De
alguma forma, é como se nunca tivéssemos saído dali. Mais concretamente, se,
nas primeiras cenas, havíamos ficado com o rosto repentinamente assustado da
mãe de Ivan, no final, esse rosto que observa o filho a beber água do balde volta
a ser sorridente (ironicamente, o plano imediatamente anterior ao do rosto da
mãe é o da cabeça de Ivan, enforcada, de pernas para o ar). A mãe se despede
placidamente de Ivan e vemos um grupo de crianças se preparando para brincar de
esconde-esconde. É Ivan que faz a contagem enquanto as crianças se escondem.
Depois, vai cautelosamente à procura dos amigos, até que vê a menina e corre
atrás dela pela areia e o mar adentro. O derradeiro plano não é, porém, da
corrida sob esse esplêndido preto e branco, mas sim de uma árvore. É um dos
mais belos e misteriosos finais da história do cinema e, mesmo que programaticamente
muito distinto, não deixa de trazer à memória o final (pela criança com uma
infância problemática, pela praia, pela ideia de uma “fuga para a frente”) de Os quatrocentos Golpes, filmado apenas três
anos antes por François Truffaut.
Apesar
de tudo o que vemos durante o filme, apesar, enfim, do “enforcamento” da
infância, da paz, enfim, do humanismo, ao happy
beginning corresponderá o happy
ending, pois, não obstante a guerra, a morte e a miséria, a única coisa que
Ivan – como nós – consegue manter inalterada, intocada, indestrutível, é isso: a
memória, as imagens de felicidade e das pessoas amadas que conserva consigo para
a eternidade. Eis o que nenhuma metralhadora ou bomba apaga: o reduto da
memória, esse resistente dínamo que, como o projetor de cinema, recupera
imagens do passado, de uma realidade que já não é atual mas que nos ajuda a
compreender e a viver um pouco melhor no mundo.
Entre-sonhos:
entre o primeiro e o último sonho, a narrativa decorre como uma espécie de paragem
temporária num “mundo real” historicamente situado (URSS, Segunda Guerra Mundial),
durando o tempo entre o qual Ivan termina uma missão de espionagem e inicia
outra (da qual não voltará). Nesse “pousio”, Ivan convive com aqueles que, na
ausência da sua família, acabam por ser as suas referências familiares (todas
masculinas): o Tenente-coronel Gryaznov, Kholin, Galtsev e Katasonov. Não é que
a correspondência literal seja aqui relevante, mas é difícil não ver em
Gryaznov a figura proto-paterna (Kohlin diz mesmo que ele irá adotar Ivan
quando a guerra terminar) e em Galtsev, ele mesmo um pequeno-grande, um irmão
mais velho de Ivan. Depois de regressar da missão com que o filme se inicia,
Ivan ouvirá desta “família” improvisada a notícia de que tem de abandonar o
campo de batalha e ingressar na escola militar. Ivan, reiterando o perfil
determinado que já havíamos testemunhado no seu primeiro encontro com Galtsev,
recusa-se determinantemente a fazê-lo, numa afirmação tragicamente impensável
de se ouvir a uma criança da sua idade: “São os inúteis que descansam em tempo
de guerra!”. Perante a intransigência de Gryaznov, foge da zona militar e dá
consigo numa antiga aldeia, agora completamente em ruínas, onde encontra o
velho e o seu galo. É uma das mais impressionantes cenas do filme, e na qual,
através da pergunta que o velho faz a Ivan, o espectador confirma que a mãe
deste foi morta pelos soldados alemães, embora nesse momento Tarkovski deixe,
sabiamente, Ivan fora de campo.
Ivan
implora a Gryaznov que o deixem ficar, pois, na verdade, a guerra é, malgré tout, a sua paz, o tempo-espaço onde se consegue pacificar consigo mesmo, porque
animado por um desígnio concreto: Vingança. O desejo de infligir aos outros a
dor que lhe causaram, eis o que move um menino a quem a guerra roubou a família
e a infância. Os “outros” são, naturalmente, os alemães, os “Fritz”, termo “(…) que ilustra bem o
anonimato, a impessoalidade, enfim, a desumanidade sinistra gerada pela guerra,
palco de confronto de sentido único, ou seja, entre “nós” e os “outros”, os (…)
não-humanos do lado de lá da barricada” .
Os “outros” que Ivan diz serem “todos iguais” e incapazes de fazer literatura, já
que os viu a queimar livros numa praça conquistada (momento em que Tarkovski
filma algumas gravuras, gosto pelo pictórico reiterado posteriormente em Andrei Rublev e em O Sacrifício). Os “outros”, ainda que Ivan associa a uma mera farda
militar na cena – uma vez mais – fantasiosa em que se imagina a atacar um
alemão no escuro com um punho “marcado com a morte” que Galtsev lhe emprestara
e com que morrerá.
A Infância de Ivan
é, assim, um filme sobre o Trauma (e a incapacidade de superação da perda
associada) e
a Vingança, estando esta última visceralmente inscrita no espírito de Ivan da
mesma forma que está inscrita nas próprias paredes do abrigo militar em que
Ivan se instala com Kholin. “Você acha que eu esqueci? Você pagará por tudo…!”,
diz Ivan com os olhos húmidos, tremendo, num estado de extrema fragilidade
emocional que até aí não lhe conheceríamos. Este exato momento é bem ilustrador
do modo como Ivan só está em “paz” consigo mesmo no teatro de guerra: prostrado
no chão, numa convulsão chorosa, Ivan só sairá deste estado quando ouve as
explosões das bombas nazis, momento em que, tendo que voltar ao campo de
batalha, seca imediatamente as lágrimas e recupera a sua determinação. Ivan
vive numa permanente “fuga para a frente”, um estado de vingança em espiral que
se auto-justifica e se auto-renova, única forma de encontrar um sentido para a
sua existência solitária no mundo (quando se recusa a ir para a escola militar,
afirma que esta é a mesma coisa que os orfanatos por onde já passou).
4. A “infância” de Tarkovski: os
primeiros traços definidores do “corpo” e do “caráter” da obra e do humanismo tarkovskianos
Para
quem já conhece o cinema de Tarkovski – mas também para os que terão a
oportunidade de o conhecer nesta mostra –, é facilmente perceptível como A Infância de Ivan, sendo o seu primeiro
longa-metragem, e com o qual arrebatou o Leão de Ouro no Festival de Veneza de
1962, é um filme em muitos pontos definidores da obra que o cineasta virá a
erigir nos anos seguintes. Neste sentido, nele se pode entrever a “infância”, o
“laboratório” do que está por vir. E isso não obstante ser o seu filme
narrativamente mais linear e com um ritmo e uma montagem mais acelerados
(escasseiam, por exemplo, planos fixos de duração significativa).
Sobre
A Infância de Ivan, Tarkovski viria a
dizer que foi o seu “exame de qualificação”, a forma de “(…) descobrir se eu
tinha, ou não, condições de me tornar um diretor. (…) Precisava confiar apenas
em meu próprio gosto e ter fé na eficácia das minhas opções estéticas. (…)
tinha de estabelecer o que poderia contar para a realização das minhas obras
futuras e o que seria descartado” .
Fazendo um balanço retrospectivo, o cineasta escreve também que “Agora, por
certo, tenho concepções diferentes sobre muitas coisas. Passado algum tempo,
ficou claro que, dentre as coisas que eu descobri, muito pouco era realmente
vital; a partir desta constatação, abandonei muitas das conclusões a que
chegara na época” .
Todavia, esta afirmação, habitual neste tipo de exercícios auto-críticos, deve
ser lida não como uma renegação ou relativização das características e
qualidades da sua primeira obra, mas, sobretudo, como a consciencialização, absolutamente
natural em qualquer artista, da evolução e amadurecimento do seu trabalho, com
todas as cambiantes e “mudanças de velocidade” que isso sempre implica.
Num
plano predominantemente técnico, muitas das marcas tipicamente tarkovskianas podem
ser encontradas em A Infância de Ivan:
os planos sequência (se bem que aqui ainda diminutos, em número e em duração);
os movimentos de câmera extraordinariamente fluídos, dando a ideia de uma câmera
“esvoaçante”; os espantosos movimentos de grua (Tarkovski e Theo Angelopoulos
serão, talvez, os cineastas que mais espetacular uso lhe deram até hoje); os travellings frontais e laterais; o
tratamento de som a que já nos referimos anteriormente e a própria música
utilizada (Vyacheslav Ovchinnikov comporia para A Infância de Ivan e para Andrei
Rublev, com as cordas e os sopros em destacado plano); enfim, a iluminação
magnetizante nos close-up sobre os
rostos intensíssimos dos atores (que denotam, por sua vez, um extraordinário
trabalho de direção).
Por
outro lado, e de um ponto de vista programático, os sonhos, a memória, a
família e a infância ou a nostalgia são temas classicamente tarkovskianos que
aqui são já inequivocamente explorados. Mas não são esses temas – perguntarão alguns
– os mesmos de muitos cineastas? Sem dúvida, ou não fossem os temas universais,
intemporais, ainda que abordados a partir de histórias ou situações
particulares, o objeto de toda a grande arte. Simplesmente, o espectador sabe que,
no caso de Tarkovski, o visionamento de cada um dos seus filmes se reconduz a
uma imersão sensorial num universo absolutamente único, incontaminável, um
“ecossistema” com uma fauna (imagem) e uma flora (som) próprias e impossíveis
de encontrar noutro lugar. Uma atmosfera que imediatamente reconhecemos como
sendo tarkovskiana, como se a isso fôssemos levados por um cheiro ou uma
temperatura característicos.
Falei
em “temas”, mas existem igualmente aspectos, tópicos ou elementos que, a um
nível mais microscópico, estão, outrossim, invariavelmente presentes – mais ou
menos sutilmente – desde A Infância de
Ivan até ao fim da sua obra (alguns dos quais assinalados anteriormente): o
som da água a pingar e a imagem de poças, lagos, superfícies húmidas e
enlameadas (é essa água que, juntamente, com o fumo ou o nevoeiro, confere uma plasticidade
aquosa e hibernal perfeitamente condizente com o ritmos dos seus filmes e a
fluidez da sua câmera); as árvores “esqueléticas”, quase sempre de ramos
despidos; as maçãs
e a sua ligação a uma figura feminina (em O
Violino e O Compressor e em A
Infância de Ivan); os animais (o carneiro, os cavalos, o galo em A Infância de Ivan; os cavalos novamente
em Andrei Rublev; os cães em Stalker); a família e a casa russa, a dacha ; as
ruínas, literais e metafóricas (A
Infância de Ivan, Nostalgia, Stalker).
A Infância de Ivan não
deixa, igualmente, de patentear um dos lídimos princípios por que se rege toda
a obra de Andrei Tarkovski e o seu próprio percurso enquanto indivíduo,
intelectual, cineasta: o humanismo (o outro é a necessidade do regresso à
espiritualidade, ainda não explorado neste filme), cujo derradeiro “grito” é
dado em O Sacrifício,
filme-testamento concretizado por Tarkovski pouco antes da sua morte . A
esse propósito, A Infância de Ivan,
sendo um filme “de guerra”, é, afinal, um filme anti-guerra por excelência, de
par com outros filmes soviéticos que, mesmo sob o olhar atento da censura ,
conseguiram passar, nas entrelinhas, uma mensagem pacifista e, acima de tudo,
não apologética da Rossiya-Matushka
(“Mãe-Rússia”), casos, entre outros, de Quando Passam as
Cegonhas (Letyat zhuravli, 1957), de
Mikhail Kalatozov, A Balada do Soldado (Ballada o soldate, 1959), de Grigoriy Chukhray ,
ou Trial on the Road (Proverka na dorogakh, 1971), de Aleksei German. Filmes que, centrados na pessoa humana, no
indivíduo – neste sentido “subjetivos” e “individualistas” aos olhos das
autoridades soviéticas –, omitem qualquer simpatia pelo projeto
transpersonalista soviético, antes lançando o seu olhar sobre a desfragmentação
familiar, psicológica e moral gerada pela guerra, simultaneamente se
desinteressando pelas concretas partes nela envolvidas e pela justiça ou
injustiça das suas motivações e ações (desde logo pelas da URSS, o seu país).
5. O raccord vital:
partir da morte e chegar à vida
O primeiro filme de Tarkovski,
A Infância de Ivan, faz, pois, um raccord perfeito com o seu último, O Sacrifício, ambos filmes onde os temas
da guerra e da “morte da humanidade” – o apocalipse nuclear em O Sacrifício é espelho metafórico para o
apocalipse espiritual – estão em primeiro plano. O primeiro decorre durante a
guerra (embora, na verdade, estejamos, em grande parte do tempo, nos seus
bastidores, sendo poucas, ou nenhuma, as cenas propriamente “de guerra”); o
segundo, por sua vez, decorre na iminência da eclosão de uma guerra nuclear
(neste raccord se sintetizando também
o modo como, à medida que o Progresso corre, aumenta também a capacidade de
auto-aniquilamento da espécie humana). No primeiro, observamos os efeitos da
guerra; no segundo, o receio da mesma e o seu evitamento. Embora o título do
primeiro filme de Tarkovski convoque o nome concreto de Ivan e possa, por isso,
indiciar um certo particularismo histórico-contextual, tanto aí como em O Sacrifício, a vocação é, na realidade,
sempre universal, como é próprio de todo o gesto humanista. Por isso, a infância
de Ivan é, na verdade, a infância de qualquer menino na Síria, no Darfur ou na
Faixa de Gaza a quem a guerra e a crueldade impõem uma realidade impensável,
inconcebível, numa palavra, desumana.
E se bem que Alexander (o
bergmaniano Erland Josephson) seja a personagem principal de O Sacrifício, bem vistos os dois filmes,
o espectador percebe que o verdadeiro protagonista é, em ambos, uma criança.
Ivan, sim, mas também o filho de Alexander, por quem – por ele e por todas as crianças,
por todos os “fazedores do futuro” da humanidade, incluindo o filho do próprio Tarkovski,
a quem o filme é dedicado – o velho se sacrificará. O sacrifício de Alexander
é, então, para que não haja mais “Ivans”, mais guerras e mais infâncias por elas
roubadas. É com o filho de Alexander que o filme começa e acaba, nesse último
plano do menino a regar a árvore e seguindo os conselhos do pai que lhe havia
contado a história do monge (no início do filme, precisamente). E a árvore –
não vemos mas sabemos – florirá, tal como a árvore na história do monge. Esta
necessidade da rega da árvore não deixa de ser significativamente simbólica
numa obra atravessada por imagens de árvores de ramos despidos (por vezes
decrépitas) filmadas sempre em planos verticais, e as quais não
constituem apenas décor, antes
assumindo uma posição quase de “protagonistas”, como acontece no tom poético
que imprimem ao encontro entre Kholin e Masha na floresta ou no sublinhar da degradação
na cena do velho e do galo sozinhos numa “terra de ninguém”.
Neste sentido, O Sacrifício faz o contraponto otimista
com o pessimismo de A Infância de Ivan:
se este praticamente terminava com um impressionante plano invertido de Ivan
enforcado (Ivan tem o mesmo trágico destino dos compatriotas que tenta resgatar
com Kholin e Galtsev), aquele deixa o espectador com uma criança em paz (uma
vez evitada a guerra) regando uma árvore (da vida, do humanismo, do futuro),
passando logo em seguida para um lindíssimo plano dos ramos da árvore sobre a
água. Se o primeiro terminava com a morte, o segundo fecha – um fecho que é, a
bem dizer, toda uma “abertura” – com a vida.
Repare como este contraponto
é, em termos “geracionais”, o menos previsível possível, no sentido em que,
tradicionalmente, é quando jovens que somos mais otimistas, idealistas, e não
quando os anos pesam, momento em que os homens tendem para um certo cinismo,
resignação ou desalento (a título de exemplo, pense como Béla Tarr, no seu
derradeiro filme, O Cavalo de Turim,
desiste, “acaba” com o mundo por falta de esperança). Pelo contrário, é na
velhice (e na doença) e – importante não esquecer – em plena guerra fria que Tarkovski,
contra todos os circunstancialismos, entrevê luz no escuro, ou melhor, acredita na luz, tem esperança, tem fé nessa luz – e talvez apenas a fé
(inexistente num “materialista” como Tarr) nos possa, de fato, valer em certos
momentos, da mesma forma que só ela fez Alexander ir ter com Maria e cumprir
com uma promessa de salvação à primeira vista absolutamente inverossímil,
ilógica, enfim, irracional
(justamente) .
É nesta fé inabalável nos homens, no humanismo, bem como na urgência do
regresso à espiritualidade postulada por O
Sacrifício, que o cinema de Tarkovski adquire uma dimensão sonhadora (diferente de onírica), o
cineasta se assumindo, então, como o “stalker”, o guia que conduz os descrentes
espectadores (como o Professor e o Escritor de Stalker) ao patamar mais elevado da crença, o único a partir do
qual podemos compreender o milagre do ato de amor de Alexander (em si um ato,
afinal, “materialista”, terreno).
Se O Sacrifício se revela, assim, como a superação de A Infância de
Ivan no modo esperançoso como olha para o porvir, isso não é por acaso, mas
fruto daquilo que, na arte, caracteriza os grandes criadores: o erguer de uma
obra densa e profunda cujos diversos aspectos e momentos estão em permanente
reenvio, em fecunda “comunicação”, refletindo e iluminando uns aos outros.
Processo que é fruto não do puro acaso, mas de uma coerência quase do foro do
subconsciente do seu autor. É absolutamente paradigmático o fato de o último
plano de A Infância de Ivan captar a
mesmíssima imagem que vemos no derradeiro plano de O Sacrifício: uma árvore, a tal que florirá.
Se quisermos, o sacrifício
que Alexander leva a cabo é para que filmes como A Infância de Ivan não tenham mais que ser feitos, para que não
tenham mais razão de existir. No
limite, é como se Andrei Tarkovski, já ciente da proximidade da sua morte,
filmasse O Sacrifício como
“resposta”, como a “resolução” de A
Infância de Ivan e, por arrasto, de todas as questões e preocupações
latentes na sua obra. Como se Tarkovski, com O Sacrifício, se auto-anulasse, se calasse, pois, entre o primeiro
e o seu último filme, tudo já foi dito e resolvido. A certa altura de A Infância de Ivan, alguém pergunta:
“Será esta a última guerra na Terra?”. “Reguem as árvores. Se as regarem, elas
florirão” – respondeu Tarkovski antes de partir para quem quisesse ouvir.
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