domingo, 31 de agosto de 2014

o excesso e o banal

"(...) é preciso pôr em questão a opinião adquirida, segundo a qual este sistema nos submerge debaixo de uma torrente de imagens em geral - e de imagens de horror em particular -, tornando-nos assim insensíveis à realidade banalizada desses horrores. Tal opinião é amplamente aceite porque confirma a tese tradicional que diz que o mal das imagens é afinal o seu número, a sua profusão que invade sem remédio o olhar fascinado e o cérebro amolecido da multidão dos consumidores democráticos de mercadorias e de imagens. Esta visão pretende ser crítica, mas encontra-se em perfeito acordo com o funcionamento do sistema. Porque os media dominantes estão longe de nos submergir com uma torrente de imagens testemunhando massacres, deslocações maciças de populações e outros horrores que constituem o presente do nosso planeta.

Bem pelo contrário, reduzem o número de tais imagens, tomam todo o cuidado para as seleccionar e dar-lhes uma determinada ordenação. Eliminam das imagens tudo o que pudesse exceder a simples ilustração redundante da respectiva significação. O que vemos, sobretudo nos ecrãs da informação televisiva, é o rosto dos governantes, dos especialistas e dos jornalistas que comentam as imagens, que dizem o que elas mostram e o que sobre elas devemos pensar. Se o horror se banalizou, não é porque dele vejamos demasiadas imagens. Não vemos no ecrã demasiados corpos em sofrimento. Mas vemos, isso sim, demasiados corpos sem nome, demasiados corpos incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objecto de palavra sem terem eles mesmos direito à palavra. O sistema da Informação não funciona pelo excesso das imagens; funciona seleccionando os seres falantes e raciocinantes capazes de «desencriptar» o fluxo de informação que diz respeito às multidões anónimas. A política própria destas imagens consiste em ensinar-nos que não é qualquer um que é capaz de ver e falar. É esta lição que é confirmada muito servilmente por aqueles que pretendem criticar a explosão televisiva das imagens".

Jacques Rancière, O espectador emancipado, Orfeu Negro, 2010, pp. 141-143.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

she was amorous




"Amorous", álbum The Beauty Created (2009). Jesse Boykins III.

último acto



O Apicultor (1986), Theo Angelopoulos.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

you and me




"The Dark End Of The Street", álbum Greatest Hits. Percy Sledge.

domingo, 10 de agosto de 2014

Ida



O Carlos Melo Ferreira assinalou que o Night Moves (2013), da Kelly Reichardt, era o filme mais bressoniano de que hoje o cinema americano é capaz (do que me inclino para discordar, porque nem sequer bressoniano o filme, americano ou não, me parece), mas, mais importante, que a personagem de Josh (Jesse Eisenberg) era, também ela, bressoniana - do que também tenho as minhas dúvidas, sobretudo depois de ver o Ida (2013, Pawel Pawlikowski), onde, aqui sim, temos uma mulher bressoniana dos pés à cabeça. Aliás, esclarecimento mais evidente disto mesmo não podia haver: depois de fazerem amor, quando o jovem músico lhe pergunta em que é que pensa, Ida responde: "não penso em nada". Pressentimos (sabemos), neste exacto momento, que este "não penso em nada" não é circunstancial ou de ocasião; pelo contrário, é precisamente o seu traço identitário fundamental: Ida "não pensa em nada" sempre. E juro pelas alminhas que tudo isto me ocorreu antes de ler este artigoNotável actriz, notável filme.

daydream


Charulata (1964), Satyajit Ray.

Falta a legenda, que, aqui, é essencial: é através da letra da canção que Charu confirma o seu amor pelo primo do marido. No fundo, uma declaração de amor encapotada. Uma vénia, Senhor Ray.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

distância

No fim, vai sempre, de facto, dar a isto: things don't get easier when you're older. You never feel that much wiser, and that when something hurts, it just hurts, and that's all you know about it. When it feels good, it feels good, and that’s all you care about. Queremos acreditar que não, que "aprendemos", que "crescemos", que coisa que o valha. É nesse momento que percebemos como a solução está numa animalidade muito própria - não a social, mas, precisamente pelo contrário, a que partilhamos com os animais mas que, pelo facto de vivermos em comunidade, temos tendência para esquecer: fecharmos-nos para nos protegermos.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

just suppose





"Interlude 47", mixtape Peep The Aprocalypse (2012). Pro Era.


"So just suppose we was juxtapose..."

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Walsh #15 - Uma ida à piscina/Oslo, 31 de Agosto (Sopa de Planos)


A última Sopa de Planos do À Pala de Walsh não podia ser mais veraneante, não fossem as piscinas um dos ex libris desta estação. Infelizmente, o plano que escolhi não é o mais veraneante possível - ao menos num certo sentido: de leveza, alegria, descontracção -, mas é dos que mais me tocaram na obra-prima que Joachim Trier nos trouxe em 2011: Oslo, 31 de Agosto.
Quando o escolhi, fiquei um pouco triste por ter que descartar um outro plano de um outro filme. Para meu regozijo, o Carlos Natálio fez o favor de pegar justamente no(s) plano(s) da piscina do filme da Sofia Coppola - e fê-lo melhor que eu o faria. Está tudo bem, portanto.

Mergulhem em todas estas piscinas mesmo aqui ao lado (clicar).


Oslo, 31. august (Oslo, 31 de Agosto, 2011) praticamente abre e fecha com duas “piscinas”: uma “natural” (um lago), outra propriamente dita. Entre elas, vida e morte. Tudo começa nesse lago, com Anders tentado pelo suicídio, ideia de que desiste (resiste), voltando “à tona” – da água e da vida. O que se segue é o perturbante acompanhamento do primeiro dia de Anders, em processo de desintoxicação, num paulatino “regresso à normalidade”, visitando alguns amigos na cidade e acorrendo a uma entrevista de emprego. A noite tem tudo para ser agradável: é Verão, Anders vai a festas de amigos, conhece algumas pessoas e revê outras, troca impressões, bebe socialmente. Acaba, já de madrugada, numa piscina com um amigo e duas (belas) estranhas. Mas, tal como durante todo o dia, em nenhum momento Anders está verdadeiramente , antes contemplando tudo sob a lente da nostalgia, do já-vivido, do repetido (e do irrepetível, porque o melhor lhe parece irremediavelmente lá atrás), como um espectador – afinal de contas, como nós, espectadores, que, sob a lente das nossas vivências e experiências, (ab)sorvemos os filmes. É isso que Anders vê – e nós também, através do seu olhar – neste plano (et por cause subjectivo): uma cópia, um simulacro do já-vivido (e inelutavelmente perdido). Por isso, apesar da vida (água, luz, cor, a beleza desta mulher que o tenta resgatar ao abismo) que inunda esta manhã – que, tal como a noite que findou, tem tudo para ser feliz –, será ainda a morte que Anders tomará num poderoso shot de heroína. I remember thinking: “I’ll remember this”. Anders dixit.

domingo, 3 de agosto de 2014

I waited for you




"I waited for you", álbum The Jazz Messengers at the Cafe Bohemia (Volume 2) (1955). Art Blakey & The Jazz Messengers.

Mazursky (and God too) loves people



Escrevi a minha crítica a Blume in Love (1973) sem ter visto Harry and Tonto (1974), o que me poupou o dilema de, caso o tivesse feito, ter que escolher entre os dois. Harry and Tonto é um filme lindíssimo, comovente, enternecedor, sobre aprender a envelhecer (a viver, portanto), sobre a necessidade de nos adaptarmos às vicissitudes que fazem os dias, acima de tudo, um filme de alguém (Mazursky) dotado de um olhar profundamente tolerante, amigável, sobre os outros, por mais diferentes que sejam de nós. Creio que a a isto se chama de... humanismo. Foi, enfim, o que tentei dizer na minha crítica quando me referi a Mazursky como alguém complemente apaixonado "pelas pessoas nas suas idiossincrasias mais profundas e mais comezinhas". Um dos melhores filmes que vi este ano (em sala/casa).

O Roger Ebert sumaria a coisa melhor que eu:

The road becomes a strange and wonderful place for Harry, mostly because of his own resilient personality. He’s played by Art Carney as a man of calm philosophy, gentle humor, and an acceptance of the ways people can beHe is also not a man in a hurry. When he can’t carry Tonto onto an airplane, he takes the bus. When the bus can’t wait for Tonto to relieve himself, he buys a used car and picks up hitchhikers. (...) Harry and Tonto drift on West toward the Pacific, and we begin to get the sense that this hasn’t been your ordinary road picture, but a sort of farewell voyage by a warm and good old man who is still, at seventy-two, capable of being thankful for the small astonishments offered by life. The achievement is partly Mazursky’s, partly Carney’s.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Walsh #14 - Crítica a "Blume in Love" (Recuperados)

 
 
Por vezes, chegamos às coisas boas pelas piores razões. Foi o que aconteceu com Paul Mazursky, de quem me abeirei por notícia da sua morte, em Junho último. Numa crítica em que tanto falo - ou tento, pelo menos, falar - do amor, foi, em boa verdade, de "amor à primeira vista" a minha relação com a filmografia de Mazursky. A minha crítica é, também por isso mesmo, e com as suas limitações, uma - quiçá vã - tentativa de trazer Mazursky para "cima do palco", ele que tão votado ao esquecimento tem sido (desde logo no nosso país). Em português escorreito: vejam os filmes, não se arrependerão.
 
A minha crítica, então, a Blume in Love (1973) ali ao lado (clicar). Quanto ao amor, é como diz o Blume: It's a miracle. (...) When you see two people in love, somehow you feel a little bit of it yourself.
 
Mazursky abre e termina o filme com um belíssimo e apertadíssimo plano-sequência da fechada de um edifício majestoso, velho e carcomido, naquele que é um elogio, se assim o podemos dizer, à “beleza das coisas antigas”, no sentido em que estas nunca desaparecem verdadeiramente, tal qual, afinal de contas, o amor de Nina e Blume, que apreciamos, no momento da reconciliação (e da sua renovação, a do amor), como um bom vinho velho. Na verdade, o divórcio parece, de certo modo, que “tinha” de acontecer – sobretudo para Nina –, para os fazer crescer, conhecerem-se melhor (a si próprios), e, depois sim, já pessoas diferentes, os fazer amar-se… melhor. 
 
(Excerto)